Contam de Clarice Lispector
Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.
Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.
Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?
- João Cabral de Melo Neto
Eu tinha 26 anos quando recebi o telefonema avisando da morte do meu pai. Nós não éramos próximos. Eu já havia parado de imaginar como ele reagiria quando soubesse que havia passado no vestibular ou conseguido meu primeiro emprego ou tivesse me casado. Eu havia o esquecido. Ainda assim - ainda assim, choveu sem descanso na madrugada seguinte a que enterraram seu corpo, e eu pensei, eu pensei tantas vezes entre o sono e a vigília: meu pai está se molhando.
O Kaddish dos enlutados é recitado três vezes ao dia. Ao final do serviço religioso, a pessoa enlutada se levanta perante a comunidade e entoa a reza em aramaico, idioma popular nos tempos talmúdicos. Eu rezei o Kaddish pelo meu pai apenas uma vez. Era a noite do seu enterro em uma sinagoga pequena. A minha única lembrança é a sensação de estar de pé, o choque de estar de pé. Tenho frequentado uma sinagoga perto de casa. Quando o rabino pede que os enlutados se levantem para o Kaddish, eu me prego bem quietinha na minha cadeira e olho para os lados. Há sempre tantos enlutados entre nós.
O Kaddish resolve o problema do que fazer com quem perde uma mãe, um pai ou um irmão. Você senta na presença deles e diz: “amém”. Tanta gente querida passou por perdas importantes nos últimos dois anos de pandemia. A G* perdeu a mãe logo no começo, em Abril de 2020. Amém. O pai da J* se foi em Janeiro de 2021, aos 59 anos. Amém. O irmão da R* partiu em Abril de 2021, também cedo demais. Amém. Acho que não é bonito confessar isso, mas todo esse tempo eu estava agarrada na minha cadeira, olhando para baixo e pedindo baixinho: por favor, eu não. Eu não quero me levantar.
Entre os 12 e os 27 anos, eu dividi quarto com a minha mãe e a minha irmã. Eu sei que não é muito usual, mas a minha vida foi assim. O ano e meio que passei sem poder ver a minha mãe - o medo subterrâneo que infiltrou as nossas vidas - foi um dos períodos mais difíceis que atravessamos. Quando eu finalmente consegui voltar a São Paulo, a minha mãe tinha ficado mais velha. Sinto que também envelheci. De certa forma, eu fiquei adulta na pandemia.
A história mais antiga do mundo é um conto de mortalidade e amadurecimento. (Não estamos apenas mais velhos, somos muito, muito antigos). Há cerca de duzentos anos, escavações arqueológicas no Iraque revelaram as tabuletas em que foram inscritas uma cópia do Épico de Gilgamesh, a narrativa central das culturas mesopotâmicas. A história tem mais de quatro mil anos - ou seja, é tão antiga em relação à Bíblia quanto a Bíblia é em relação a nós. Lá está o primeiro Éden, com árvores cujas frutas são pedras preciosas. Lá está a origem do conto de Noé e do Dilúvio. Lá estão a filosofia e a linguagem do Eclesiastes. O Épico de Gilgamesh é o registro escrito mais antigo sobre os seres humanos e suas tentativas de decifrar o que é isso de ser uma pessoa.
O épico conta a história do jovem rei Gilgamesh e seu companheiro de batalhas Enkidu. Forte além de qualquer comparação, Gilgamesh não tinha pares com os quais se relacionar, de modo que era um tirano com a população local; os deuses se organizam até que Aruru, a deusa da criação, forge do barro um amigo para Gilgamesh. A dupla torna-se inseparável. Juntos, Gilgamesh e Enkidu desafiam a morte na tentativa de realizar feitos que eternizem seus nomes. A morte é um conceito teórico para Gilgamesh; sua preocupação concreta é a próxima batalha, que lhe trará honra e fama inigualáveis. Os companheiros matam Humbaba, o guardião da Floresta de Cedros, e dominam o Touro do Céu, enviado pela deusa Ishtar. Os deuses, porém, julgam que eles foram longe demais; Gilgamesh e Enkidu precisam ser lembrados de que são apenas pessoas, e que seu destino é comum a todos que vivem. Enkidu morre ainda jovem.
Pela primeira vez, Gilgamesh entende de verdade que, se o seu amigo Enkidu morreu, ele também vai morrer. Vai todo mundo morrer. Menos uma pessoa - Gilgamesh se lembra da história de Utnapishtim, o homem que foi poupado do dilúvio. Desesperado com a sua recém adquirida compreensão da mortalidade, ele decide atravessar o jardim dos deuses para encontrá-lo e desvendar o segredo da vida eterna. Gilgamesh cruza desertos de escuridão e navega por rios distantes. Enfim, fica cara a cara com Utnapishtim. O ancião conta-lhe a história do dilúvio mas não pode fazer muito mais: “Desde os dias antigos não há permanência. Os mortos e os adormecidos, como são parecidos - são como uma morte pintada”.
Utnapishtim deixa Gilgamesh ao menos com um consolo, a flor da juventude. Ele dá instruções de como achá-la no fundo do rio, no caminho de volta. Gilgamesh mergulha nas profundezas e a segura em suas mãos, mas a promessa de juventude também lhe escorre pelos dedos. A flor é roubada pela cobra, que passa a trocar de pele, constantemente se renovando. Não há o que fazer a não ser aceitar a mortalidade e retornar para casa.
O épico termina de forma prosaica. Não há Floresta de Cedros ou Touro do Céu ou léguas de escuridão. Um Gilgamesh maduro vê de novo os muros de sua cidade e se pergunta: não é essa minha Uruk? Não são de tijolos suas fundações, não há nela jardins e templos e campos? Gilgamesh compreende em seu coração que as coisas são passageiras - e como é bonito que por enquanto elas existam.
Hoje a minha mãe chega para uma longa visita. Passei o sábado lavando a sua roupa de cama, aspirando pó e abrindo um espaço no armário. Como é bonito que teremos mais esse tempo juntas. É um pequeno milagre.
Natureza morta por Henri Fantin-Latour (1865)
Às pessoas novas aqui, sejam bem-vindas e obrigada. Eu tenho 32 anos e moro há 5 em Nova York. Nasci no Mato Grosso e cresci no interior de São Paulo e depois na capital. Trabalho em escritório e escrevo por amor. Essa newsletter é semanal. A cada duas semanas, publico um texto de análise bíblica. No meio do caminho, depende do que me der na telha na hora.
qdo penso sobre a morte, eu sempre me lembro de uma história budista em que mara [personificação do opositor de buda] aparece e, ao ver o Buda em meditação, diz:
"a vida é muito longa. devemos passar por ela como uma criança, mamando no peito da mãe."
o buda responde: "a vida é muito curta. devemos vivê-la como se tivéssemos a cabeça em chamas."
eu tenho para mim q essa consciência límpida da morte, a familiaridade com a impermanência de todas as coisas, isso é crucial para aproveitar a vida, para adquirir uma real noção doq importa.
acredito que, qto mais próximos chegarmos doq realmente importa ao longo da vida, se fizermos o possível para isso nos dias q nos forem dados, mais preprados estaremos para deixar a vida a qualquer momento, sem medo e sem esperar por recompensa.
obrigado, ariela!