Camille Paglia nunca deu à luz a um bebê. Quando li o seu livro pela primeira vez, essa também era a minha situação. Nas semanas após o parto da minha filha, voltei ao capítulo inicial de Personas Sexuais como quem relê a previsão astrológica para o ano que acabou de se encerrar. Paglia escreve:
A menstruação e o parto são um ultraje à beleza e à forma. Em termos estéticos, são espetáculos de uma sordidez aterradora. A vida moderna, com seus hospitais e produtos de papel, tem distanciado e higienizado esses mistérios primitivos, assim como fez com a morte, que costumava ser um evento doméstico extenuante. Muita coisa horrível é varrida para debaixo do tapete: o temor e o terror que são nossa sina.
Ou ainda:
A repugnância histórica em relação à mulher tem uma base racional: o nojo é a resposta adequada da razão à crueza da natureza procriativa.
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Quando a instrutora abriu o Zoom para comentários, eu não sabia o que dizer. Há um nível de ignorância tão profundo que não se sabe nem articular uma pergunta. Qual a principal questão sobre parto que gostaríamos que aquela aula respondesse?
Aos sete meses de gravidez, caiu a minha ficha de que por algum lugar a bebê tinha que sair. Não uma ficha teórica, de que uma gravidez culmina num parto, mas uma ficha prática, de que um parto é um processo que envolve vários passos concretos, sobre os quais minha mente era um registro praticamente em branco. Quando eu pensava num parto, quais eram as imagens que me vinham à cabeça? Algum filme com uma mulher dizendo “minha bolsa rompeu”, os olhos chocados mirando uma poça no chão. Alguma cena de época com uma grávida urrando, baldes de água, uns panos cobertos de sangue, criadas correndo por corredores escuros. Além disso, o vazio. Meu estoque de representações culturais da gravidez parecia pequeno e inútil.
Nas aulas em que me inscrevi, outros casais de trinta e poucos anos eram nossos colegas de ignorância, a biologia básica explicada com slides e condescendência pela instrutora do hospital. Apenas 10% dos trabalhos de parto começam com a bolsa estourando. Na verdade, a bolsa pode nem mesmo estourar de forma natural. Só o finalzinho do trabalho de parto é uma dor lancinante e a pressão para o bebê sair. Horas, muitas horas, são de contrações espaçadas, tédio e espera.
Com tantas pessoas no mundo, o parto é uma das experiências mais comuns da humanidade. Mesmo assim, há um silêncio. Seria um assunto por demais íntimo, por demais feminino? Seria tão ordinário e portanto indigno de representação? Seria, como diria Paglia, o nojo?
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Para Camille Paglia, a ideia de que a natureza é bela não passa de uma ilusão de quem faz trilha aos finais de semana. Para quem não é turista no mundo natural, basta arranhar a superfície para que ele se revele em sua forma verdadeira: violenta, pulsante, feia.
O desafio mais grave aos nossos sonhos e esperanças é a biologia rotineira que acontece dentro e apesar de nós a cada hora do dia. A consciência é uma refém miserável de sua envoltura carnal, cujas pulsações, circuitos e murmúrios secretos não pode deter ou acelerar. Este é o drama que não tem clímax, mas apenas um retorno interminável, ciclo após ciclo. O livre arbítrio é natimorto nas células vermelhas de nosso corpo, pois não há livre arbítrio na natureza. Nossas escolhas nos chegam pré-embaladas e com entrega especial, moldadas por mãos que não as nossas.
Para alguns, as limitações do corpo só se revelam na doença. Para outros, a incongruência entre o material e o imaterial é mais constante e profunda. De qualquer forma, segundo Paglia, biologia é prisão, é a morte de qualquer possibilidade de escolha. As sociedades pré-históricas entendiam as limitações impostas pela natureza de uma forma que hoje nos escapa. As cheias dos rios, a luta contínua por alimento, os nascimentos abundantes e as mortes precoces - a tese de Camille Paglia é que a cultura ocidental nasceu como revolta contra a natureza, a vitória da imaginação sobre a realidade.
Não é um acidente que a cultura antiga seja marcada por pouca representação feminina, diz Paglia, pois há um sexo sobre o qual recaem mais pesadamente os ditames do mundo natural. Ela defende que a natureza é identificada com a mulher e seus ciclos férteis, de modo que, por extensão, a mulher é o problema que a cultura tenta corrigir.
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Quando eu ainda estava pensando em engravidar, eu perguntei para uma amiga médica o que eu podia fazer para me preparar. Ela poderia ter me dado uma resposta protocolar, alimentação e exercícios, quem sabe uns exames de rotina, mas o que me falou foi realmente útil. Não há nada para fazer. Está fora do seu controle. O corpo tem a própria lógica, e escolher gerar uma pessoa significa aceitar e amar o que a natureza decidir por você.
Às duas da manhã da sexta-feira, nove meses de gravidez, começava em casa o turno da insônia. No congestionamento pelo único banheiro do apartamento, foi a minha mãe que reparou no sangue. Michael acordado, ligação para a médica, foto para a doula: estava oficialmente instaurado o pânico da madrugada. Entre as autoridades de parto e o deus Google, chegou-se a uma conclusão unânime. Havia saído o tampão mucoso, a barreira que fecha o colo do útero. Agora era questão de horas, ou dias. Na verdade, até semanas. Tem grávidas que ficam o mês inteiro andando por aí supostamente à beira do trabalho de parto. O melhor que eu fazia era voltar a dormir.
Algumas horas depois, no escuro, as contrações começaram. O corpo não é mais seu, ele está trabalhando para se abrir ao meio e expelir alguma coisa que não é você. Das aulas de parto, eu sabia que a partir de agora até o choro do bebê seriam até 48 horas. Até 48 horas: sempre um intervalo estimado, nunca uma certeza. Saindo do Brasil, terra da cesárea, eu nunca tinha de verdade imaginado meu parto, mas se tivesse eu imaginaria assim: centro cirúrgico, 19 horas. Não sou uma pessoa atlética, não sou amante da vida natural, não sou conectada com o meu próprio corpo. Mas sou uma pessoa que mora nos Estados Unidos, e aqui o padrão é que se tenta o parto vaginal, a não ser que você tenha um sério motivo em contrário. Eu não tinha um sério motivo.
Acordei o Michael mais uma vez. As contrações ainda estavam esparsas, algo como uma cólica começando a cada dez minutos, piorando até o pico da dor em quinze segundos, depois me deixando aos poucos até desaparecer. Os números mágicos, que aprendemos nos slides, são 5/1/1: contrações em intervalos de cinco minutos, com duração de um minuto, por ao menos uma hora, seriam o marco para ir para o hospital. Estávamos longe. O Michael me abraçou através do travesseiro de gestação.
A voz da memória me trouxe as palavras da instrutora: o parto se revela em cada uma de forma diferente. Há quem goste de contato, há quem se tranque sozinha até a hora de ir para a maternidade. Aceitei que a minha situação não estava funcionando e migrei para o quarto de visitas, numa cadeira ao lado da minha mãe. Mas minha mãe queria achar um jeito de ajudar, e não, não tinha como me ajudar, e cada oferecimento de auxílio era como ouvir alguém pedindo calma - a receita para sentir o oposto, o desamparo das coisas que a gente tem que fazer por conta própria. Eu e meu útero pulsante migramos novamente, agora para a cadeira de balanço da sala, preparada para se tornar a poltrona de amamentação. O dia estava clareando pela janela. Todas as besteiras que a instrutora falou voltavam à superfície, trazidas pelas ondas de dor, e agora pareciam profundas e significativas. Você pode fazer qualquer coisa por um minuto. Visualize algo que te dá força. Entre mentalmente num lugar seguro. Ou as besteiras da doula: não resista à dor, não surfe contra a onda, é uma dor com significado. Sem o cinismo, todas as besteiras eram verdadeiras. Agradeci pela decisão de ter contratado, além da médica obstetra, uma doula com franja no meio da testa e botton com pronomes she/her para me falar umas metáforas marítimas.
Sozinha na poltrona, senti o sol nascer pelas minhas costas. Baixei um aplicativo para acompanhar as contrações. Você clica quando a pulsação começa e quando termina, e assim pode acompanhar o progresso. A partir das 7h da manhã, comecei a mandar capturas de tela para a doula. O que você está fazendo para lidar com a dor?, ela me ligou para perguntar depois de algum tempo. Pensei em preservar minha dignidade. Devo ter hesitado, ainda mais em inglês. Tolice: ela logo veria um bebê sair pelas vias normais. Estávamos unidas por uma intimidade temporária.
Bom, na verdade, eu acabei desenvolvendo uma técnica. Quando a contração vem, eu começo a cantar uma música baixinho e balançar na cadeira, meio como um judeu ortodoxo rezando, sabe? Ela pareceu gostar da resposta. Sim, é bom entoar uns cânticos.
Desperado, why don't you come to your senses?
You been out ridin' fences for so long now
Oh, you're a hard one
But I know that you've got your reasons
These things that are pleasin' you
Can hurt you somehow
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A religião começou com as mulheres. As historiadoras feministas já reviraram as evidências arqueológicas e não encontraram uma sociedade matriarcal que se preze, diz Camille Paglia, mas todas as pistas religiosas apontam para a mesma direção: os primeiros cultos foram para as deusas da fertilidade.
Antes do Pai Celestial, havia a Mãe Natureza. Em diferentes partes do mundo, as religiões começaram como resposta aos segredos e à violência da reprodução. Dê-me um filho. Deixe que ele cresça bem, enquanto não consigo vê-lo. Não permita que eu morra no parto. Para a mesma força que dá a vida, pedimos para que não a tire. Não agora.
Os mais antigos objetos devocionais são figuras femininas, concebidas em pedra e datadas de 42.000 atrás. A mais famosa é a Vênus de Willendorf, encontrada na Áustria. Sobre ela, Paglia escreve:
Seus misteriosos poderes procriativos e a semelhança de seus seios, barriga e quadris arredondados com os contornos da terra colocaram-na no centro do simbolismo primordial. Ela serviu de modelo para as figuras da Grande Mãe que proliferaram no surgimento das religiões ao redor do mundo.
A percepção original sobre o mágico, continua Paglia, está ligada aos segredos do ventre. A mulher que se expande e se duplica de acordo com as próprias leis - está aí a raiz do oculto. O homem é um ser voltado ao externo, ele projeta; a mulher internaliza e, no escuro do ventre, produz algo novo.
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- Não estamos no meio da selva, vamos para o hospital agora - Minha mãe tinha perdido a paciência. Eram quatro horas da tarde e eu ainda estava quicando na bola de ioga.
Entramos num uber. Eram cinco horas da tarde e estávamos descendo sessenta quadras da Columbus Avenue em direção ao Mount Sinai West. Da minha história de parto, sobrou para o motorista também uma lasca de relato para a hora do jantar.
Passei pela triagem. Eram seis da tarde e o protocolo diz que a gestante entra sozinha na sala. Antes de ver a dilatação, a enfermeira precisa perguntar: você se sente segura em casa?
Fomos encaminhados para um quarto. Eram sete da noite e a doula apareceu com uma sacola de Mary Poppins, e de lá saíram uma caixa de som, um nebulizador de lavanda e luzinhas de Natal. Na véspera de Páscoa, ela subiu num banquinho e enfeitou a janela.
A enfermeira de plantão se apresentou. Eram oito da noite e eu tinha dois monitores na barriga, um para os meus sinais vitais e outro para os do bebê. As contrações formavam picos e vales na tela ao lado da cama.
Eram nove da noite. Na tela, uma cordilheira.
Eram dez da noite, a bolsa ainda não tinha rompido. Eu andava no quarto e fazia agachamento para acelerar as contrações. Quando elas vinham, a doula ou o Michael seguravam as minhas costas.
Onze da noite, eu achava que daria para ir até o fim sem anestesia. Estava com medo da peridural e da sonda. A enfermeira trouxe uma bomba de gás hilariante como anestésico alternativo.
Meia noite, a obstetra entrou para estourar a bolsa. Imaginei um procedimento médico semi-sofisticado; ela colocou o dedo e, tuc, lá se foram nove meses de líquido amniótico, num jorro quente entre as pernas.
Meia noite e meia, eu tinha que levantar da maca para ir ao banheiro. Sem o líquido amniótico funcionando como amortecedor, senti o bebê descendo de uma vez só. Uma contração atrás da outra. Não, não ia dar sem anestesia. Chama a enfermagem, não consigo dar nenhum passo.
Uma hora da madrugada e eu estava sem a sensação das pernas, sonda passada e doidona do gás hilariante que usei até a anestesista chegar. Mandei mensagem para algumas amigas dizendo que estava no hospital, feliz e completamente drogada. Me falaram para tentar adormecer, que eu precisaria de energia para a próxima fase. Obedeci.
O trabalho de parto continua enquanto a gente dorme. Três hora e meia da madrugada, a obstetra e a enfermeira entram correndo na sala. O monitor na barriga tinha perdido o sinal do bebê. Som da borracha das luvas. O bebê abaixou. Dez centímetros de dilatação. Não, espera, nove e meio.
Quatro horas da manhã. Quando a tela mostrar o começo da contração, tem que fazer força de cocô - palavras da médica, eu juro. Uma, duas, três, quatro vezes. A bebê Lili nasceu às 4:10 da manhã do domingo de Páscoa.
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Partos são tripas, sangue, sujeira na terra. A mulher, portadora dos segredos da fertilidade, é a representante do mundo natural que precisa ser transcendido, se quisermos alguma chance de vida civilizada. O salto qualitativo das culturas gregas e hebraicas, cuja mistura funda a cultura ocidental, consiste em mudar o centro de preocupação das religiões da terra para as religiões do céu, dos cultos da fertilidade para os cultos da imaginação, do feminino para o masculino:
Tanto as tradições gregas quanto as judaico-cristãs são transcendentes. Isto é, elas buscam superar ou transcender a natureza. O judaísmo, a seita-mãe do cristianismo, é o mais poderoso dos protestos contra a natureza. O Antigo Testamento afirma que um deus pai criou a natureza e que a diferenciação em objetos e gêneros ocorreu após o fato de sua masculinidade. O judaico-cristianismo, assim como o culto grego aos deuses olímpicos, é um culto aos céus. É um estágio avançado na história da religião, que em todos os lugares começou como culto à terra, a veneração da natureza fértil. A evolução do culto terrestre para o culto celestial desloca a mulher para um reino inferior.
Na história da religião, a sordidez do parto é substituída pela imaculada criação através da palavra: Deus diz “que haja luz”, e há luz. O locus do trabalho criativo, diz Paglia, muda do material para o imaterial, do ventre para a cabeça. Deixa-se fora de vista a bagunça da qual somos feitos.
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No cruzamento da Avenida Lexington com a Rua 53, aos sete meses de gravidez, eu me empoleirava no banco de trás de um táxi imundo, a caminho de uma reunião.
- O mundo está cheio de idiotas. Todos eles nasceram - Minha chefe fez um movimento amplo com a mão, apontando através da janela. - Quando eu ficava ansiosa antes dos meus filhos nascerem, eu pensava em todos os idiotas.
Ela sabia do que falava. Diferente da Camille Paglia, ela tinha parido três filhos.
O parto é uma das experiências mais comuns do mundo. Ele une cada um que já nasceu a uma mãe, e cada mãe à mãe antes dela, numa corrente de centenas de milhares de anos de gente comum, que uma hora se abre ao meio e, da fissura, extrai uma pessoa.
A gente lê polemistas para discordar ou acrescentar ao menos um pouco, senão não tem graça. Então vamos lá: as representações culturais não descolam o locus da criação apenas do feminino para masculino, do ventre para a cabeça, da terra para o céu - elas deslocam a atividade criativa da pessoa comum para a pessoa extraordinária, do transeunte no cruzamento para o gênio isolado. As histórias de parto são incontáveis porque são ordinárias e sujas e de mau gosto e porque sim, delas saímos todos nós, todos, todos, os idiotas.
"O parto é uma das experiências mais comuns do mundo. Ele une cada um que já nasceu a uma mãe, e cada mãe à mãe antes dela, numa corrente de centenas de milhares de anos de gente comum, que uma hora se abre ao meio e, da fissura, extrai uma pessoa."
Que texto potente você escreveu. Obrigada por isso.
Fim de semana passado compartilhava histórias de parto com outras amigas que também pariram. Não tive doula, não tive anestesia, não tive mãe ao meu lado — por causa das malditas fronteiras fechadas. Tive que confiar no óbvio, que você descreve tão bem nesse texto: parir é comum. O dia todo, todos os dias, mulheres expelem pequenos seres humanos do corpo. Eu também podia, afinal.
Prestes a viver o parto uma segunda vez, tudo parece diferente. Mais tranquilo. Mais comum. E, dessa vez, quem sabe, tendo ao meu lado a mãe que me pariu.
"Antes do Pai Celestial, havia a Mãe Natureza."
Obrigada pelo teu texto que chegou aqui no momento mais oportuno! Fiquei muito a fim de ler a referência da Camille Paglia também!!