Everything in the world is about sex, except sex. Sex is about power.
I.
Estamos com o nariz quase encostado no vidro. Eu gosto de museus de História Natural, com suas galerias escuras e animais brincando de estátua. Por vários minutos, a gente se esquece nas sombras e aceita a ilusão: entre os búfalos na pradaria, com os jaguares no cânion, sob os pássaros na floresta tropical. Se você olhar bem de perto, quem sabe por um segundo está em outro lugar.
Mas não: a respiração marca o vidro e se aproxima uma criança com seus gritinhos de empolgação (quando você tem três anos, cada descoberta é a coisa mais legal que você já viu na vida). Quem sabe os pais tenham que explicar o que é um animal empalhado - a pele do bicho morto esticada sobre um molde. De repente, a ilusão ganha contornos soturnos. Na janela para uma outra vida possível, a morte. Por trás dos olhos do jaguar, tão alertas, um vazio de poliuretano e resina.
De tantas coisas sobrou só a casca. Um livro antigo é o registro da porção mais epidérmica de uma consciência, e apenas com um salto de imaginação podemos reconstruir o troço vivo. Reconhecemos as palavras - amor, sexo, Deus - e supomos que elas significam o mesmo desde a fundação do mundo, as nossas experiências diárias tão velhas quanto Matusalém. Os gregos e os romanos - os nossos mesmos dramas humanos, mas de sandália e toga.
Por trás das palavras familiares, há mundos estrangeiros. Mesmo os nossos sentimentos mais íntimos tem uma história, e não há identidade que não seja contingente a ter nascido em um lugar e ter aprendido a sentir de um jeito. Nunca me interessei em ler o “Banquete”, de Platão, até Michel Foucault ter me cochichado que o famoso diálogo sobre o amor era também sobre o amor entre homens, e eu não conseguir evitar um sorrisinho - todos aqueles perfis tradicionalistas nas redes sociais e suas estátuas de mármore clássico. A palavra “amor” tinha conotações diferentes, nas quais Sócrates e Platão não podiam suspeitar nada de escandaloso.
Foucault alerta sobre o anacronismo de impor ao mundo antigo palavras como homossexualidade, bissexualidade, tolerância. Os gregos não sentiam nesses termos. Como ninguém registra o óbvio, as premissas tão compartilhadas que sequer notamos, é difícil reconhecer a estranheza na epiderme. Uma pessoa pode ler o “Banquete” presumindo que a experiência normativa de amor hoje era exatamente a experiência normativa de Platão. Em sua "História da sexualidade”, Foucault vasculha as cascas dos gregos para, entre o dito e o não dito, reconstruir o cerne vivo.
Na sexualidade grega, pensava-se nas relações como o encontro de uma ponta passiva e uma ponta ativa. A ponta passiva poderia ser uma mulher ou um homem, com igual naturalidade - Sócrates ficaria chocado com a ideia de que o mesmo ato representaria alguma binariedade -, mas guardada a condição de poder associada às partes. Uma mulher era sempre a parte passiva, com sua subalternidade de nascença. A um homem nobre, um futuro cidadão, era permitido e incentivado que assumisse o papel passivo enquanto fosse pré-púbere; a relação com um homem mais velho era também uma fonte de aprendizado, e só podemos especular quais famosas relações de mestre-pupilo iam além da filosofia. Quando um homem nobre desenvolvia barba, era esperado que, com as suas novas obrigações de cidadão, ele migrasse para a ponta ativa; a ponta passiva era desonrosa para um homem feito, de quem se esperava que procurasse garotos, escravos e até mesmo a sua esposa.
As luzes do Museu de História Natural acendem. Está quase na hora de fechar e os funcionários querem as vias iluminadas, praticidade na hora de tocar todo mundo para fora. Com a plateia à vista, os animais agora encaram de volta: os sentimentos humanos, também sujeitos da História.
II.
Sob as novas luzes, abrimos o Levítico: “E com homem não te deitarás como se fosse mulher; é uma abominação" (18:22). Dentro de seu contexto, o que essa frase queria dizer? Conseguimos enxergá-la em seu bioma natural ou ficamos hipnotizados por nosso reflexo no vidro?
Aprendi com a Carol Bensimon que as exibições de animais empalhados tem um nome: diorama. Vai ser difícil esquecer, depois de ter lido o romance de mesmo nome. O diorama é uma imagem muito bonita para um livro que fala sobre enfrentar o passado e reconstruir a memória, um trabalho de imaginação e de domínio do trauma. A personagem principal é uma taxidermista que mora na Califórnia e se vê na posição de rever o pai, agora morimbundo, que foi o provável assassino de um caso que dominou o noticiário gaúcho nos anos 1980. O motivo do crime, o leitor descobre conforme Cecília junta suas lembranças, tem a ver com homossexualidade.
Na década de 80, um ato homossexual era um carimbo para a vida. Enquanto os gregos faziam o que queriam sem que o sexo se cristalizasse em identidade, mais recentemente o ato homossexual deflagra uma crise existencial - ser marcado como bicha, ser associado ao submundo, viver sob o espectro da AIDS. No processo de reconstruir sua história pessoal em narrativa, Cecília também empalha outra fera: a conotação que a homossexualidade tinha em sua infância. Enquanto os personagens de Porto Alegre ainda lidam com algo de selvagem e perigoso, o encontro de Cecília com a própria sexualidade não é fatal. Ela olha o bicho nos olhos, mas ele não é mais capaz de dar o bote; a sua aventura com outra mulher é um acontecimento, e não uma crise.
O tamanho da mudança de sensibilidade que é possível no curso de uma vida dá a dimensão de quão profundas podem ser as transformações em 2.500 anos. Se a datação dos acadêmicos está correta, o Levítico, embora tenha origens mais antigas, tomou sua forma final cerca de 400 anos antes da Era Comum, que corresponde aproximadamente à Idade de Ouro de Atenas e ao período em que Sócrates viveu. Como parte do Mediterrâneo expandido, os hebreus não só escreviam com ciência dos gregos, mas também em oposição aberta a eles. A frase do Levítico 18:22 se insere numa polêmica que os hebreus, um povo mais fraco e minoritário, abriram contra as práticas das potências da época. Essa não é uma leitura relativista e pós-moderna; no estilo característico do texto, marcado por circularidades e repetições, a contextualização consta na abertura e no fechamento do capítulo:
Não fareis segundo as obras da terra do Egito, em que habitastes, nem fareis segundo as obras da terra de Canaã, para a qual eu vos levo, nem andareis nos seus estatutos. Fareis segundo os meus juízos e os meus estatutos guardareis, para andardes neles. (Levítico 18:3-4).
E também:
Com nenhuma destas coisas vos contaminareis, porque com todas estas coisas se contaminaram as nações que eu lanço de diante de vós. E a terra se contaminou; e eu visitei nela a sua iniquidade, e ela vomitou os seus moradores. Porém vós guardareis os meus estatutos e os meus juízos, e nenhuma destas abominações fareis, nem o natural, nem o estrangeiro que peregrina entre vós; porque todas estas abominações fizeram os homens desta terra que nela estavam antes de vós; e a terra se contaminou. (Levítico 18:24-27).
Nesses trechos, aparecem egípcios e cananeus, os antagonistas mais comuns da Bíblia; porém, não é absurdo supor que eles também serviam de disfarce para cutucar outros povos ainda poderosos, os quais não convinha criticar diretamente. A literatura dos cananeus sumiu no tempo. Os registros escritos do Egito são tímidos em comparação ao legado arquitetônico. De substancial, restam os livros antigos dos gregos, que temos que soprar à vida para que nos revelem o que indignou a fonte sacerdotal do Levítico.
Uma coisa é certa: não há indícios de que a Antiguidade conhecesse relações amoroso-sexuais entre homens estabelecidas com base em consensualidade e igualdade entre as partes. Ou seja, como a Bíblia explicitamente nos diz que estava condendando práticas que existiam na época, ela é silenciosa sobre a ideia de união homossexual que conhecemos hoje. Com base nesse silêncio, rabinos como Bradley Artson, reitor da escola rabínica conservadora Ziegler, defenderam a possibilidade de casamento religioso entre pessoas do mesmo sexo. Desde a década de 1990, há rabinos oficiando casamentos religiosos entre homossexuais; em 2012, o movimento conservador aprovou a inclusão do casamento gay na lei judaica por 13 votos a zero. Para pessoas como Artson, que encaram o Levítico e não se assustam, qual era a abominação sob os olhos dos sacerdotes?
O capítulo 18 proíbe relações em desigualdade flagrante de poder. O texto traz uma longa lista de relações incestuosas, cujo tabu não é só o da proximidade, mas também o da dúvida em relação à consensualidade. Em seguida, ele passa rapidamente por proibições já estabelecidas anteriormente: relações com mulheres em período menstrual e com a esposa alheia. Logo antes da frase fatídica, o trecho dá a deixa para percebermos que estamos lidando com uma sensibilidade arcaica - ele vê a necessidade de proibir sacrifício infantil (“entregar sua semente a Moloch”). Finalmente, vem a abominação a sexo entre homens e com animais.
Dentro desse conjunto, não combina uma relação de afeto entre iguais; apenas os nossos preconceitos contemporâneos podem ser culpados por lermos nesse texto uma condenação a uniões amorosas, como se elas coubessem no mesmo fôlego que incesto e bestilalidade. O Levítico estava condenando a violência. Como nota o padre James Alison, todos os casos em que se menciona sexo entre homens, na Bíblia Hebraica (o Antigo Testamento dos cristãos), são episódios de estupro, de humilhação, de abuso de poder. Olhemos os gregos, sobre os quais Foucault nos alerta a não pensar nos termos de "tolerância" sexual: os atos que eles conheciam não eram entre cidadãos em pé de igualdade, mas entre nobre adulto e garoto, entre nobre adulto e escravo. Olhemos no espelho: onde está a abominação?
III.
Em “Diorama”, a homossexualidade surge num mundo de homens durões: pampa gaúcho, arma no coldre, congressistas com chapéu de caubói. Aprendemos a enquadrar esse dilema como hipocrisia, a cultura do macho man se chocando com as suas práticas. Olhando de perto, a tensão se desfaz. A cultura masculina tem um longo histórico de homoafetividade, com o desprezo pelas mulheres andando de mãos dadas com o amor entre homens.
O primeiro canto da Ilíada é uma partilha de despojos durante a Guerra de Tróia. Aquiles e os outros generais gregos fazem a divisão das mulheres feitas prisioneiras, que vão se juntar aos acampamentos na condição de escravas. Sentindo-se injustiçado na partilha, Aquiles fica com raiva e se retira da guerra. Os gregos caem à esquerda e à direita, mas Aquiles não deixa sua tenda. Ele só volta ao campo de batalha por conta de Pároclo, seu amigo íntimo.
Na guerra, masculina por excelência, adora-se homens: seus músculos, sua argúcia, seu poder. Os contos de batalha possuem a sua tensão sexual particular. No Épico de Gilgamesh, uma de nossas histórias mais antigas, o coração da trama também é a amizade especial entre dois guerreiros. Os ambientes puramente masculinos desenvolvem o seu próprio centro de gravidade sexual - a admiração exclusiva destinada a homens achando os seus caminhos para as vias de fato. Onde não há admiração a mulheres, só pode haver amor entre homens. Em Moby Dick, a caça de baleias começa com Ishmael e o arpoador Queequeg se deitando como esposos.
Na Grécia e em Roma, o ideal era ser cidadão, ativo politicamente, bem educado - qualificações impossíveis às mulheres, com quem eles se uniam por alianças de poder e procriação. O amor eles encontravam nas imagens de si que viam em seus garotos. Quando a Bíblia invade o Império Romano, o Levítico ajuda a reprimir o ato sexual entre homens, forçando-os a se contentar com suas esposas. Somos herdeiros, porém, dessa tensão sexual que não se realiza: uma cultura masculina que é educada para admirar homens mas forçada a desejar mulheres. A interdição bíblica interrompe a lógica homoerótica da cultura greco-romana, que busca mulheres para reprodução e gestão da casa, homens para amor e admiração. Porém, por séculos persistiu ainda uma cultura homoafetiva. Como escreve Marilyn Frye:
Dizer que um homem é heterossexual implica somente que ele mantém relações sexuais exclusivamente com o sexo oposto, ou seja, mulheres. Tudo ou quase tudo que é próprio do amor, a maioria dos homens héteros reservam exclusivamente para outros homens. As pessoas que eles admiram; respeitam; adoram e veneram; honram; quem eles imitam; idolatram e com quem criam vínculos mais profundos; a quem estão dispostos a ensinar e com quem estão dispostos a aprender; aqueles cujo respeito, admiração, reconhecimento, honra, reverência e amor eles desejam; estes são, em sua maioria esmagadora, outros homens. Em suas relações com mulheres o que é visto como respeito é gentileza, generosidade ou paternalismo; o que é visto como honra é a colocação da mulher em uma redoma. Das mulheres eles querem devoção, servitude e sexo. A cultura heterossexual masculina é homoafetiva, ela cultiva o amor pelos homens.
Muitas das nossas imagens de masculinidade são devedoras de figuras associadas ao sexo entre homens: os guerreiros da Grécia, os poderosos romanos, os marinheiros em alto-mar. A masculinidade se construiu sob o signo de Aquiles, e depois escondeu as marcas inconvenientes. “E com homem não te deitarás como se fosse mulher” é uma condenação, nos termos gregos, à parte ativa da relação, ao detentor do poder na hierarquia sexual. Metaforicamente, o Levítico estava batendo no forte, na ponta nobre da relação homem-garoto; ele estava comprando briga com Aquiles; estava empurrando Odisseu de volta para a esposa, que ele deixou em casa antes dos jogos entre parceiros.
Na saída do Museu de História Natural, ainda olho de relance os búfalos na pradaria. Entro em outro mundo: sol na cabeça, cheiro de suor, animal em fuga e esporas de homem - o Velho Oeste e seus segredos de caubói. A história das pessoas e seus sentimentos.
Esta foi uma edição do ciclo bíblico, escrito sob a minha perspectiva judaica e não-religiosa. O trecho a que esse texto se refere é Acharei Mot (Levítico 16:1-18:30).
(Uma nota sobre nomenclatura: num texto em que as palavras não são o que parecem, acho justo explicar que a linha conservadora não tem, no judaísmo, a mesma conotação que “conservador” tem no discurso político. Grosso modo, o judaísmo reformista surgiu primeiro, no século XIX. Em reação ao que se entendeu como os excessos da Reforma, nasceu o movimento ortodoxo, que procurou congelar a lei judaica no tempo. Numa reação à reação, surgiu a linha conservadora, que pretende conservar o que ela enxerga como essencial no judaísmo - o caráter interpretativo da lei. Atualmente, reformistas e conservadores são as linhas majoritárias. Para quem tiver curiosidade, a Congregação Israelita Paulista é referência no Brasil e possui grupo LGBTQIA+. O Gaavah é o coletivo judaico-LGBTQIA+ no país, ligado ao Instituto Brasil-Israel. Se vocês conhecerem iniciativas semelhantes de outras religiões, deixem nos comentários!)
oi Ariela, li esse texto mais cedo e fiquei pensando nele ao longo da tarde, no trabalho. eu gostei muito da leitura que você fez do livro da Carol Bensimon (eu AMEI o diorama, ainda quero ler outras coisas dela). especialmente esse trecho aqui: "Enquanto os personagens de Porto Alegre ainda lidam com algo de selvagem e perigoso, o encontro de Cecília com a própria sexualidade não é fatal. Ela olha o bicho nos olhos, mas ele não é mais capaz de dar o bote; a sua aventura com outra mulher é um acontecimento, e não uma crise." 💜
também fico encantada com a elegância do teu texto, fico imaginando que tu talvez se comunique na maior parte do tempo em inglês e aí ainda nos entrega uma ótima escrita em português. me impressiona! um beijo.
Ooi Ariela, cirúrgico como sempre! Você tem o nome do texto ou livro da Marilyn Frye pra indicar?