Não é bonito ser ignorante, mas às vezes tem o seu charme. Por exemplo, ano passado li Hamlet pela primeira vez.
Shakespeare é um autor que acumulou tamanho prestígio literário que é difícil se aproximar de sua obra sem o peso de uma obrigação cultural. Uma das vantagens da diletância, porém, é poder chegar no texto com o prazer da plateia original. Antes que a catedral de Shakespeare se levantasse, antes que por suas arcadas passassem os eruditos dos últimos cinco séculos, antes que os acadêmicos cutucassem cada pedra solta do alpendre, A tragédia de Hamlet, o príncipe da Dinamarca foi recebida como a nova obra do dramaturgo mais empolgante da época.
Convido o leitor a deixar a dignidade da cátedra e atravessar o Tâmisa em direção a Southwark, a região “salve-se quem puder” nas imediações de Londres, no século XVI. Por conta de pressões religiosas e dos surtos de peste bubônica, os teatros eram proibidos dentro das fronteiras da cidade. Uma bandeira preta teria sido levantada no topo do teatro para indicar a encenação de uma tragédia. Tomaríamos um barco para atravessar o rio. Seguiríamos entre os prostíbulos e os anúncios da próxima briga de ursos. Chegando no teatro circular, como bons turistas do passado, escolheríamos a opção mais local possível e pagaríamos 1 penny para ficar entre os groundlings, o povão que assistia às peças de pé, perto do palco. Vendedores de cidra e de amendoim se acotovelariam entre a multidão. Por sorte não estaria chovendo, pois o espaço era aberto e só contava com a iluminação solar. Não esperaríamos as cortinas se abrirem, pois não havia cortinas. Às claras e sem divisão com o palco, a plateia era uma presença incontornável.
Cena de Shakespeare Apaixonado (1998)
Hamlet é uma historinha de assassinato e vingança, de reis e fantasmas. A poesia é bela, mas quanta bela poesia não é ignorada pelas massas? A grandeza de Shakespeare está na relação especial que ele estabelece com a audiência. Cada linha parece ter sido escrita com a consciência de que haveria pessoas de pé por quatro horas para escutá-la. O texto busca o encontro com a plateia, e existe para convencê-la, atraí-la, seduzi-la. O feito literário é ainda mais impressionante quando lembramos que os groudlings eram apenas uma parcela da audiência. A peça precisava manter o controle simultaneamente do povão, sob o risco real de uma tomatada; do público mais exigente, que lotava as galerias, e da corte, onde as montagens eram reencenadas. Nesse que é o segundo texto mais comentado em inglês depois da Bíblia, quase podemos ver as cordinhas pelas quais a ilusão teatral joga com a plateia. Mesmo assim, nós voluntariamente nos deixamos levar.
Como estudo de caso e incentivo para leituras ou releituras, deixo aqui as minhas notas sobre o mecanismo em ação no Ato I de Hamlet.
Cena I
A peça começa num tom sombrio, um mau presságio para o futuro da Dinamarca. Durante o turno da noite, os guardas reais têm visto o fantasma do recém-falecido rei Hamlet rondando o castelo. Horácio, colega de universidade do príncipe Hamlet, é chamado para testemunhar a aparição. Inicialmente cético, Horácio é convencido da existência do espectro, que se revela paramentado com a armadura do rei, mas se recusa a falar.
Essa primeira cena serve para desarmar a descrença do público, ao mesmo tempo em que finca a narrativa no universo do espectador comum. A história refere-se à sucessão do trono, porém o olhar que a inaugura é de um trabalhador do dia-a-dia. Como em Romeu e Julieta, a tragédia se inicia sob a perspectiva de um representante do povo, que lota a plateia. O aceno para a aproximação está dado. Em vez de dispensar os guardas como supersticiosos, o texto valida a sua perspectiva através de Horácio. Quando o inteligente e educado Horácio se convence do sobrenatural, a plateia recebe a deixa para se juntar à suspensão de descrença.
Cena 2
Enquanto a verdade da aparição se revela no escuro da noite, as intenções genuínas se escondem durante o dia. A segunda cena é construída em contraste à primeira. Saem os guardas, entra o atual rei da Dinamarca. Em uma audiência do rei, aprendemos que a sucessão natural foi interrompida. Quem assumiu o trono não foi o príncipe Hamlet, mas o seu tio Cláudio. Para piorar a situação, mal o corpo do rei Hamlet esfria na cova, a rainha Gertrudes contrai um segundo matrimônio com Cláudio. Somos apresentados a Polônio e Laertes, pai e filho, fiéis súditos da Coroa. Amargurado e irônico, o príncipe Hamlet faz sua primeira entrada. Cláudio e Gertrudes minimizam a dor de Hamlet - é da natureza que pais morram, de modo que o sofrimento do filho é excessivo.
A cena funciona para angariar duplamente a simpatia do espectador. Primeiro, Cláudio é pintado nas piores cores possíveis, inclinando a audiência em direção a causa de Hamlet. Segundo e mais interessante, temos o uso do solilóquio. Hamlet é o personagem que detém o monopólio da comunicação direta com o público. Enquanto os outros personagens se revelam através das interações entre si, Hamlet faz seus discursos mais icônicos encarando a plateia. Na convenção teatral, chama-se de “quarta parede” a divisão imaginária entre o palco e a audiência. A ideia é que o palco seria um ambiente auto-contido, em que os personagens contam sua história sem reconhecer a existência do público. No teatro de Shakespeare, assim como não há cortinas, não há quarta parede. A plateia é uma presença no ambiente. Quando Hamlet fala sozinho no palco, ele não conversa consigo mesmo; como um promotor na frente de um júri, ele está pedindo que a plateia se junte a ele na condenação da mãe e se iguale a ele em desespero.
Cena 3
A narrativa continua jogando com as afeições da plateia através de contrastes. A terceira cena mostra a dinâmica familiar de Polônio, Laertes e sua irmã Ofélia, que tem sido cortejada por Hamlet. A intimidade e o tom de aconselhamento genuíno marcam a diferença com a família real, que parece ainda mais problemática em comparação. Após o apelo de Hamlet por simpatia na segunda cena, a cena seguinte planta a semente da dúvida em relação ao seu caráter. Polônio e Laertes aconselham Ofélia a manter distância do príncipe e rejeitar seus avanços. A plateia é introduzida à calma da vida doméstica, aumentando a carga dramática do final da trama, quando a família é destruída.
Cenas 4 e 5
A atmosfera sombria retorna. Hamlet concorda em esperar pela aparição com Horácio e um dos guardas. Cabe ao guarda o diagnóstico da situação: há algo de podre no reino da Dinamarca. O espectro aparece e Hamlet o segue, apesar da recomendação em contrário de Horácio. Quando pai e filho se reencontram, a plateia é a única testemunha. O ápice do primeiro ato, no qual o falecido rei revela a trama de seu assassinato pelo irmão, é um segredo compartilhado apenas pelo príncipe e o espectador. Na ausência de um terceiro que valide a visão sobrenatural, a plateia é colocada na mesma posição do príncipe Hamlet: é isso uma alucinação ou a realidade? Depois que o fantasma o abandona, mas antes que Horácio e o guarda o alcancem, Hamlet compartilha mais um momento de intimidade com a audiência: em um solilóquio, ele jura vingança. Finalmente, Horácio serve de novo como representante inteligente da plateia. Hamlet conta a ele o seu plano de agir como se estivesse doido para atingir seus objetivos, de modo que o amigo se torna confidente e cúmplice na tragédia.
Nesse ponto, o leitor poderia perguntar: toda a arte não joga com as sensações do público? Um pintor não pinta para que seja apreciado, um escritor não escreve para que seja lido, um músico não toca para alcançar a plateia? Qual seria o diferencial de Shakespeare? De fato, toda a arte é uma forma de comunicação - é um convite em direção ao outro. Em “O que é Arte", Tolstói define a arte como um mecanismo de contágio: aquilo que é capaz de evocar no público as emoções sentidas pelo autor. Tolstói então denuncia Shakespeare (e vários outros figurões, sem poupar a si mesmo), como um falsificador de arte. De acordo com ele, Shakespeare nunca sentiu as emoções que busca transmitir; ele é apenas um comerciante da palavra, um profissional da ilusão, categoria que Tolstói despreza ferozmente. Em outras palavras, Tolstói acusa Shakespeare de só escrever para lotar teatro - no que ele está absolutamente correto. No entanto, lendo Hamlet, fico com a impressão que a genialidade de Shakespeare está em escrever para ser bestseller. Cada cena é uma deferência ao leitor, uma tentativa de conquistá-lo, de convencê-lo.
A romancista Marilynne Robinson, também doutora em literatura inglesa, faz uma associação interessante entre a popularidade de Shakespeare e o momento histórico em que ele viveu. Segundo ela, o autor de maior circulação na Inglaterra do século XVI era João Calvino, líder da Reforma Protestante. De forma bastante esquematizada, a Reforma representou uma reaproximação do cristianismo em relação à pessoa comum. A missa abandonou a exclusividade do latim, a Bíblia foi traduzida para as línguas vernaculares e cada pessoa podia buscar a salvação, sem a autoridade de um intermediário. Num momento na Inglaterra em que as autoridades eclesiásticas ainda estavam apartadas da realidade popular, foi o teatro que se dispôs a falar com todos. Era pela arte que se atingia o propósito cristão de se comunicar com toda e qualquer pessoa.
Como nós, Tolstói associava Shakespeare ao luxo de um teatro com poltronas estofadas e à pretensão de quem se acha um refinado apreciador da Grande Arte. A realidade de Shakespeare não podia ser mais diferente: era o sol batendo na cabeça da plateia - ou a chuva fina de Londres - e o cheiro de cidra derramada. A atitude anti-elitista de Tolstói, porém, é justificada. Quanto da conversa sobre arte não é um clubinho de iniciados, quanto do papo sobre literatura não é um passatempo para os bem educados? Shakespeare sabia que a marca da grandeza é conseguir falar com todos.
Em um texto sobre a audiência, não poderia deixar de fazer um aceno para os meus leitores. Tem algum comentário? Pode me enviar um email, terei prazer em ler e responder. Se quiser assinar as próximas atualizações ou compartilhar com os amigos, seguem os botõezinhos:
Como eu li Hamlet
Uma peça é para ser encenada, não lida. Na ausência de um teatro, o que eu fiz foi acompanhar a versão original, pela edição da Folger Library, com uma dramatização disponível no Audible. Após cada cena, eu roubava um pouco e consultava a versão gratuita No Fear Translation, que é uma tradução do inglês de Shakespeare para o uso corrente, sem nenhuma preocupação com métrica ou poesia - é só um recurso para estudantes que precisam fazer a lição de casa. Mas é bacana.
Edição da Folger Library: Hamlet ( Folger Library Shakespeare): Shakespeare, William, Mowat, Dr. Barbara A., Werstine Ph.D., Paul: 9780743477123: Amazon.com: Books
Audible: Hamlet: Fully Dramatized Audio Edition by William Shakespeare | Audiobook | Audible.com
No Fear Translation: No Fear Shakespeare: Hamlet: Act 1 Scene 1 | SparkNotes
Referências
Palestra de Marilynne Robinson: Shakespeare: The Question of Audience - YouTube
Reconstrução do teatro de Shakespeare: Globe Theatre: Performance during Shakespeare's time - YouTube
primeiro comentário q leio sobre hamlet q não faz referência ao "to be or not be", hehehe... mto bom esse olhar atento e despojado de pretensão, mas sutil, com observaões bem pertinentes sobre o contexto histórico e notas de leitura atenta. fiquei pensando na incorporação da quarta parede em romances e me lembrei de como shakespeare influenciou a escrita do "dom casmurro", basicamente um solilóqio de narrador não confiável como (vc faz a gente atentar) o hamlet...