Sextou: um santuário no tempo
Preciso esclarecer, logo na largada, que esse é um texto hipócrita: é um texto sobre Shabat escrito por uma pessoa que nunca guardou Shabat, que pertence a uma família que também nunca observou os costumes do sábado. Eu li um livro, porém, que me convenceu que o Shabat faz sentido - o sentido das coisas bonitas e verdadeiras.
Esse livro não foi Guerra e Paz. Mas, por coincidência, em Tolstói achei isso aqui:
“A tradição bíblica diz que a ausência de trabalho - o ócio - era a condição da beatitude do homem, até a sua queda. O amor ao ócio permaneceu o mesmo no homem decaído, mas a maldição continua a pesar sobre o homem, e não só porque precisamos ganhar o nosso pão com o suor do rosto, mas também porque, em razão dos nossos atributos morais, não conseguimos estar ociosos e nos sentir tranquilos. Uma voz misteriosa diz que devemos sentir culpa se ficamos ociosos. Se o homem pudesse encontrar uma situação na qual, estando ocioso, se sentisse útil e cumpridor do seu dever, teria encontrado uma parte da beatitude do primeiro homem.”
Na tradição judaica, essa situação não só existe como se repete semanalmente. Entre o pôr do Sol de sexta-feira e o aparecimento das três primeiras estrelas do sábado, santifica-se um dia de ócio. Na história do Gênese, D’us cria o mundo em seis dias, observa-o, e em cada um desses dias declara que a criação é boa (“e viu que era bom”). O ápice da Criação, porém, ocorre no sétimo dia: faz-se o dia do descanso, o Shabat, o primeiro elemento ao qual a Bíblia Hebraica se refere como sagrado. Na primeira oportunidade, a Torá não estabelece a sacralidade do Criador, não santifica um local no espaço, uma imagem ou um animal: o texto seminal do judaísmo santifica um momento no tempo.
De acordo com o rabino Abraham Joshua Heschel, no livro “O Shabat”, o judaísmo é uma religião que visa a santificação do tempo. A realidade tem duas dimensões: a material e a temporal. A filosofia por trás do judaísmo consiste em viver no mundo material mas santificar o mundo imaterial. Por seis dias, nós trabalhamos, nos preocupamos com o nosso sustento e nossas aspirações, nossas tarefas e nossas obrigações. No sétimo dia, nos lembramos que o mundo já foi criado - ele existiu antes da gente e vai continuar a existir sem a nossa presença. O dia mais santo, o ápice da semana, é justamente o momento em que somos obrigados a não produzir nada.
Durante seis dias da semana, temos a missão de conquistar o mundo; na dimensão material, somos todos competidores. No último dia, conquistamos a nós mesmos; no tempo, somos todos contemporâneos. Durante seis dias, as horas nos escorrem pelos dedos e os planos não cabem em nossas agendas cheias. No último dia, as horas se estendem vazias e eternas.
Heschel usa a imagem de um trem atravessando a paisagem para explicar nossa relação com o espaço e o tempo. Quando estamos em um vagão em movimento, temos a impressão de que as árvores que enxergamos através da janela estão se movendo, enquanto nós estamos parados. Quando nos guiamos pelo movimento do planeta, parece que o tempo passa, enquanto nós permanecemos. Na realidade, o tempo é eterno e está nos atravessando; somos nós e tudo que existe no mundo que estamos perecendo. Para Heschel, o tempo é o mais próximo que conhecemos da natureza de D’us.
Como escreveu Tolstói, há algo nas pessoas que nos empurra ao movimento. Mesmo quando não estamos fazendo nada, tendemos a desesperadamente nos ocupar com alguma coisa, nem que seja apenas rolar o feed dos nossos celulares. As pessoas não precisam ser lembradas de viver no mundo material. O Shabat existe porque precisamos nos disciplinar justamente a não habitar a dimensão material como a única realidade que existe. Nas palavras de Heschel: “there is a realm of time where the goal is not to have but to be, not to own but to give, not to control but to share, not to subdue but to be in accord”.
No livro de Heschel, há um consolo para os hipócritas: como o tempo, a santidade do Shabat existe e nos atravessa independente da nossa observância. Cabe a nós abrir espaço para o espírito do Shabat, um relaxamento que também é uma elevação.
***
Esse é o livro: O Schabat: seu significado para o homem moderno: 49 | Amazon.com.br
É curtinho e recomendo enormemente.
***
O rabino Abraham Joshua Heschel (1907-1972) é um dos grandes nomes do judaísmo contemporâneo. Foi um filósofo da religião e um ativista do movimento dos direitos civis. Abaixo, sua foto mais famosa, com Martin Luther King na Marcha de Selma (1965).
***
Sobre a amizade entre MLK e Heschel, pela filha de Heschel: Their Feet Were Praying | Jewish Week (timesofisrael.com)
***
Uma nota política
Está na moda certos atores políticos se declararem defensores dos “valores judaico-cristãos”. O judaísmo não sobreviveu dos romanos aos alemães para precisar de tão desinteressados defensores nos dias atuais. Esse texto também é uma minúscula tentativa de tomar de volta valores que estão sendo instrumentalizados.
***
Para terminar, um trecho bonito do livro:
“Nothing is as hard to suppress as the will to be a slave to one’s own pettiness. Gallantly, ceaselessly, quietly, man must fight for inner liberty. Inner liberty depends upon being exempt from domination of things as well as from domination of people. There are many who have acquired a high degree of political and social liberty, but only very few are not enslaved to things. This is our constant problem - how to live with people and remain free, how to live with things and remain independent.”
***
Para receber o próximo texto por email, é só clicar em subscribe: