Em uma aula para escritores iniciantes, Margaret Atwood recomenda que um autor mantenha em mente qual a idade que seu personagem tinha em 11 de Setembro de 2001. Presumindo uma audiência americana, o argumento de Atwood é que as pessoas vivem na História; personagens são o que acontece a elas e como elas reagem. Mesmo que as Torres Gêmeas nunca caiam em determinado livro, na construção do personagem, o autor precisaria saber como a pessoa imaginária que está criando foi atravessada pelos eventos históricos do seu tempo.
Não sei se essa lição de Margaret Atwood um dia vai me ser útil para criar personagens, mas ela me ajudou a articular o que gosto em Philip Roth, que já foi, e talvez ainda seja, um dos meus autores preferidos: um dos temas centrais de Roth é o que significa ser uma pessoa na História e o que fazer quando uma vida é atravessada pelos acontecimentos. Roth é uma Agatha Christie da literatura “séria”: ele tinha suas fórmulas e suas preocupações e as repetiu ao longo de toda carreira, por quase 30 romances. A fórmula básica de Roth é: um homem está vivendo sua vida normal na Costa Leste americana, entre as décadas de 1940 e 1990, quando um evento histórico o atropela: a Guerra da Coreia (Indignação, 2008), a Guerra do Vietnã e a radicalização política dos anos 1960 (Pastoral Americana, 1997) ou a emergência do "politicamente correto” nas universidades dos anos 90 (A Marca Humana, 2000).
Diferente da maior parte dos romances históricos, que parecem implicitamente responder à pergunta “como era estar vivo em determinado momento histórico?", Roth fala do passado com a atualidade do presente. Quando Roth escreve sobre a epidemia de poliomielite na Newark de 1944, ele não apenas transporta o leitor para um lugar do passado, um episódio numa sequência histórica que nos acostumamos a ordenar e da qual extraímos sentido (“esse foram os anos Roosevelt; o presidente morreria no ano seguinte sem ver o fim da guerra”, “isso foi mais de 15 antes da vacina de Albert Sabin”), mas ele constrói um presente com a mesma realidade do que habitamos. Um dia em Julho de 1944, antes de se cristalizar como uma página da História, foi um presente instável em que as possibilidades estavam abertas.
Nêmesis é o último romance de Philip Roth, um livro curtinho que representa a iteração final da obsessão de Roth com a História. Também é o romance em que essa questão é colocada mais claramente, no qual um Roth à beira da aposentadoria pega na mão do leitor e explica diretamente o que significa aquilo tudo (em geral, há poucas coisas piores que ficção explicadinha; é um testemunho da habilidade do autor que ele faz justamente isso e nao diminui o livro).
Nêmesis, a deusa grega do destino e da retribuição divina.
Em uma mão, a rodada da fortuna. Aos seus pés, um homem sendo massacrado.
O protagonista de Nêmesis é Bucky Cantor, um jovem atlético que é impedido de ir para a guerra devido a miopia. Bucky tornou-se monitor do pátio de recreio de Weequahic, o bairro judaico de Newark. Ele é adorado pelas crianças e, filho de pai ladrão e criado pelos avós, está prestes a ficar noivo de uma moça de boa família. Então, vem a pólio. Dois dos alunos do pátio contraem casos graves e morrem em poucos dias. Outras crianças amanhecem sem o movimento das pernas. Ainda não se sabe o que causa o contágio; os candidatos vão da salsicha mal fervida na lanchonete local à estafa das crianças no pátio do colégio. Bucky Cantor não é especialmente inteligente mas tem um senso de obrigação forte; impedido de lutar no front da 2a Guerra Mundial, ele faz do pátio do colégio a sua trincheira pessoal.
Quem conta a história de Bucky é Arnie Mesnikoff, que passa dois terços do livro camuflado de narrador impessoal em terceira pessoa. Arnie é uma das crianças que frequentava o pátio durante o surto de pólio. Tanto Arnie quanto Bucky são sobreviventes da pólio, porém Bucky se responsabilizava pelos eventos externos e acabou destruindo a própria vida, enquanto Arnie se via como uma vítima de acontecimentos aleatórios e por isso conseguiu se salvar. Bucky era o herói, mas Arnie se salva justamente porque foi o anti-herói, porque reconheceu que foi pego numa ressaca da História e arrastado contra a vontade, e que não precisava transformar uma tragédia social numa tragédia pessoal pelo resto da vida.
Do narrador Arnie:
“Algumas pessoas têm sorte, outras não. Toda biografia é uma questão de chance e, a partir do momento da concepção, a sorte - a tirania da contingência - comanda tudo.”
“Bucky não conseguia aceitar que a epidemia de pólio que atingiu as crianças de Weequahic e as crianças de Indian Hill fora uma tragédia. Ele precisava converter a tragédia em culpa. Precisava encontrar uma necessidade para o que ocorria. Há uma epidemia e Bucky necessita de uma razão para ela. Tem de perguntar por quê. Por quê? Por quê? O fato de que ela não tem sentido, que é acidental, ilógica e trágica não o satisfaz. O fato de que é um vírus que se prolifera não o satisfaz. Ao contrário, ele busca desesperadamente uma causa mais profunda, esse mártir, esse maníaco à procura de uma razão, e descobre o porquê em Deus ou nele próprio, ou misticamente, misteriosamente, na terrível ligação dos dois como um só exterminador.”
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Poucos livros condenam tanto o nosso pensamento tacanho e a nossa arrogância contemporânea quanto o Livro de Jó. Ano passado, em um curso sobre o cânone ocidental, era comum alguém comentar que não entendia como o Livro de Jó era um texto religioso. Ocorre que o Livro de Jó não só é um texto religioso, como é provavelmente o mais antigo da Bíblia Hebraica, e a longevidade de uma história tão estranha deveria abalar alguma das nossas certezas sobre o que é a religião. (Alguns adultos inteligentes parecem pensar que as melhores mentes do mundo, por cerca de três mil anos, acreditavam numa versão um pouco mais sofisticada de “papai do céu", sem cogitar que talvez elas próprias não tenham entendido absolutamente nada).
Jó é um antecessor de Bucky Cantor. Jó tinha tudo que um homem de milhares de anos atrás podia querer: dez filhos, muitas ovelhas e a estima da comunidade. Um dia, Deus apostou a vida de Jó com Satan. Deus se gabava de ter em Jó um servo tão fiel, e Satan perguntou: “é mesmo? E se tirarmos tudo de Jó, o que sobrará dessa fidelidade?”. E Deus permitiu que Jó perdesse os filhos, as terras, os rebanhos. Jó permaneceu temente a Deus. Satan continuou: "é claro! Sobrou a Jó saúde!". E Deus permitiu que a pele de Jó se cobrisse de feridas e dores lhe afligissem o corpo.
A Bíblia Hebraica tem um humor que é pouco apreciado, principalmente por uma mentalidade cristã (Milton fez uma enorme fanfic do Gênese sem demonstrar ter entendido que o texto também era engraçado). De saída, o Livro de Jó nos conta que o protagonista era um justo; seu destino não foi decidido por suas ações, e Deus não tinha um motivo especial para testá-lo. Jó passa metade do livro clamando que era um homem correto e pedindo de Deus uma explicação para a sua miséria. Quatro homens, antigos amigos e conhecidos de Jó, o rebatem com palavras inflamadas e o exortam a se aceitar pecador e não rejeitar Deus. A melhor retórica é gasta para explicar algo que o leitor sabe que não faz sentido. As pessoas se atormentam, se acusam e sofrem procurando um porquê que não existe. A situação é tão ridícula que até Deus perde a paciência e se apresenta aos homens para dar um fim no debate.
Deus não se justifica - ao menos não com a lógica de causalidade do papai do céu (“Jó foi punido porque foi um mau menino”). O que Deus faz é afirmar a multiplicidade e o poder da Criação:
“Teria a chuva um pai? Ou quem teria gerado as gotas do orvalho? De que matriz surge o gelo? Quem deu à luz a neve dos céus? Congelam-se as águas parecendo pedras, e se torna gelo a face do abismo.”
"É por sua sabedoria que se eleva o falcão e abre suas asas, voando para o sul? Será por tua ordem que a águia voa até o alto e nas alturas estabelece seu ninho? Ela vive e se abriga na fenda de uma rocha, que se torna sua fortaleza. De lá ela divisa sua presa. Seus aguçados olhos a percebem desde longe. Também seus filhotes sugam sangue, e onde há mortos ela está presente.”
Jó primeiro fica em silêncio, mas Deus o obriga a falar. A verborragia e a revolta então desaparecem de sua fala, e Jó se reconhece pequeno (“nada mais sou que pó e cinzas”). Os homens que buscavam sentido no sofrimento de Jó são rechaçados e obrigados a lhe entregar parte de suas riquezas. Após abdicar de fazer sentido do passado, a sorte de Jó é restabelecida e ele recebe o dobro do que tinha quando a história começou.
Há certamente uma interpretação conformista para esse episódio: a lógica de Deus (ou dos acontecimentos, da História, como quisermos entender) não seria acessível às pessoas e portanto não nos cabe questioná-la. Nessa interpretação, Jó teria sido premiado quando abriu mão de entender. Mas há também um outro significado, que se conecta ao destino de Bucky Cantor e Arnie Mesnikoff.
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Arnie Mesnikoff narra:
“A concepção que Bucky fazia de Deus era de um ser onipotente cuja natureza a propósito deviam ser deduzidos não a partir de um duvidoso testemunho bíblico, e sim das irrefutáveis provas históricas colhidas durante uma existência passada neste planeta em meados do século XX. A concepção que ele fazia de Deus era de um ser onipotente que representava a união não de três pessoas em uma Divindade, como preconizava o cristianismo, mas de apenas duas: um filho da puta maluco e um gênio do mal.”
Paralisado pela pólio, Bucky Cantor é grosso com a noiva que ainda insiste em casar com ele e desdenha do Deus em que ela acredita. Ela fala:
“Bucky, você sempre foi assim. Nunca foi capaz de ver as coisas com a devida distância, nunca! Está sempre se considerando responsável quando não é. A culpa ou é de um Deus terrível ou de um Bucky Cantor terrível, quando, de fato, a culpa não é de nenhum dos dois. Sua atitude em relação a Deus é… juvenil, simplesmente boba.”
Bucky Cantor procura uma lógica para a desgraça. A culpa é dele que fugiu de suas obrigações ou é de um Deus que paralisa criancinhas. Enquanto brada contra Deus ou procura em si mesmo a causa do sofrimento, ele se condena a viver no passado, a ser refém dos acontecimentos. Arnie Mesnikoff, o narrador que se esconde em boa parte do livro, nunca chega a acreditar que a História tem um significado. Ele não se coloca no centro dos eventos (“nada mais sou que pó e cinzas”); a desgraça de Arnie é um dano colateral.
Arnie tem uma vida após a pólio. Ele se casa, tem filhos e abre uma firma de arquitetura dedicada a adaptar edifícios para deficientes físicos. Bucky, o menino prodígio, se deixa destruir. Ele termina a vida recluso e ressentido, trabalhando em um posto de gasolina. Deus nunca aparece para dar um pito em Bucky, para falar que o mundo é maior que o sofrimento dele, e assim ele acaba o livro escravo da própria dor.
Na história de Jó, sabemos desde o começo: foi sorte. Não significa nada (“o fato é que ela não tem sentido, que é acidental, ilógica e trágica”). E mesmo assim nos deixamos seduzir pela argumentação de Jó e de seus quatro amigos, nos pegamos avaliando suas posições e tomando partido, e no fim ainda coroamos a interpretação do livro com um “Deus tem motivos que não cabe ao homem conhecer”.
O Livro de Jó e Nêmesis parecem livros livros trágicos e desoladores, e de certa forma o são: neles, o sofrimento existe e não tem sentido; cabe aos personagens aceitar para que sigam em frente. Mas há neles também uma mensagem de liberdade da contingência: se não há culpa, não há martírio. Se o sofrimento passado não faz sentido, não há porque ser escravo dele. Se há um caminho para olhar, ele está para frente.
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No Êxodo, há uma diferença crucial nas traduções hebraicas e cristãs, que revela discordâncias fundamentais de compreensão de mundo. Quando Deus aparece para Moisés na moita em chamas e faz um chamado para que ele lidere o povo para fora do Egito, Moisés faz quatro perguntas para tentar dissuadi-lo. Uma delas é mais ou menos assim: “Deus, por que os anciãos acreditariam em mim? E se me perguntarem o Seu nome?”.
As traduções cristãs traduzem a resposta no presente. Na Bíblia de Jerusalém: “Eu sou aquele que é”. Na versão de King James: “I am that I am”. Há uma essência divina imutável e absoluta. Toda a história da Bíblia, de fato toda a História, tem que ser lida à luz dessa essência.
As versões hebraicas trazem o tempo verbal no futuro. “Serei O que serei”, na tradução para o português da Editora Sêfer. Na tradução recente de Robert Alter para o inglês: “I-Will-Be-Who-I-Will-Be”. O povo foi escravizado, o faraó mandou matar todos os bebês homens, Moisés assassinou uma pessoa e se tornou um fugitivo em terras estranhas, e quando Deus aparece para ele, Moisés faz outros questionamentos, mas não pergunta porquê. Todas as fichas estão no futuro. A visão hebraica da História é essencialmente messiânica - a revelação está num futuro ainda por ser construído. “Serei O que serei” não é o Deus que vem explicar o passado; é o Deus da travessia para o futuro.
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A Diletante é uma newsletter com aspirações quinzenais. Esse texto atrasou porque há uma versão dele na minha cabeça em que eu faço a ponte com as teses sobre a História de Walter Benjamin, e me meto na polêmica entre Hannah Arendt e Gershom Scholem sobre Benjamin ser mais marxista ou mais místico judaico com influências messiânicas. Se você ainda não assinou a newsletter, aproveite o ensejo agora e se mantenha atualizado sobre tretas antigas e outros temas curiosos:
Referências
Nêmesis, de Philip Roth. Companhia das Letras, 2011
Bíblia Hebraica. Editora Sêfer, 2006.
Rabbi Jonathan Sacks: Faith in the Future (Shemot 5780) - Rabbi Sacks. O rabino Jonathan Sacks tem um livro todo sobre isso: Future Tense: Jews, Judaism, and Israel in the Twenty-first Century: Sacks, Jonathan: 9780805212297: Amazon.com: Books