Pós-identidade: Lispector para o século XXI
Esse é o segundo e último texto sobre Clarice Lispector. No final do ano, a gente tem umas ideias estranhas - esse mini-ciclo de Lispector foram as minhas. No próximo texto, voltamos a Jacó no deserto. Clique em subscribe para receber no seu email:
A primeira vez que me pediram os pronomes foi em um curso sobre Clarice Lispector. Era o meu primeiro encontro com uma instituição de ensino americana. As mesas estavam organizadas em círculo e uma professora miúda de óculos vintage ofereceu vinho e pediu que nos apresentássemos - nome, pronomes, o que nos trouxe ali. Eu não tinha me mudado havia muito tempo, e tudo parecia peculiar e divertido. Como se faz nessas ocasiões, não ouvi a apresentação de ninguém, enquanto testava na minha cabeça o som das palavras “My name is Ariela and my pronouns are she/her”. Foi bom que treinei, ou arriscava ter esquecido meu nome. O senhor imediatamente à minha direita se apresentou com os pronomes it/its, pois se identificava com a barata de A Paixão Segundo G.H.
“I identify with the cockroach” virou um bordão familiar. Já o repeti em inúmeras gracinhas. Também na minha cabeça, porém, devo desculpas ao senhor da barata. Anos depois, terminei de ler Água Viva para outro curso (A Grande Conversa Brasileira, novo curso | alex castro) e, bem, o tema do livro é a busca por uma identidade de barata. Uma identidade it.
Publicado no fim da carreira de Lispector, Água Viva é um livro estranho. Em um posfácio, Eucanaã Ferraz descreve-o como um romance abstrato, uma versão escrita de um quadro de Pollock. A narradora, que não se nomeia, é uma pintora que escreve para o ex-marido ou namorado, de quem se separou recentemente. E esse é o máximo de enredo que se extrai de Água Viva. O romance é uma sucessão de imagens da vida não-humana: plantas, animais, grutas. A narradora declara que escreve o livro em uma série de madrugadas insones, e não pude deixar de imaginar uma Lispector que também escreve esse livro febril sob a luz de um abajur, entre o sono e a vigília.
Jackson Pollock. Blue poles. 1952.
Lispector é uma escritora que não escreve para mim. Como na sala de aula da Casa Hispánica, seus livros me deixam com a impressão de que entrei sem querer na reunião de um culto que usa algo parecido com um idioma que eu conheço, mas no qual as palavras possuem significados que eu não compartilho. Inúmeras vezes reviro os olhos para trechos indecifráveis (“Tenho que interromper para dizer que ‘X’ é o que existe dentro de mim. ‘X’ - eu me banho nesse isto. É impronunciável. Tudo que não sei está em ‘X’. A morte? A morte é ‘X’. Mas muita vida também, pois a vida é impronunciável”). No entanto, continuo lendo. Minimizo a verdade - na realidade, leio de novo e de novo, tal que essa semana li e reli e treli Água Viva. A graça de Lispector é a estranheza. Há algo de hipnótico na alteridade que seus livros representam, na possibilidade radical de algo que não sou eu. Que não somos nós.
O tema central de Água Viva é a recusa em se identificar. A busca da narradora sem nome é pelo essencial, o indiferenciado, o que é comum a toda a vida. A narradora tem uma fascinação pelo pronome impessoal it, utilizado em inglês ao longo da narrativa. O it é o universal, o que transcende o humano e o individual. Ele representa uma busca pelo outro no mundo; em última instância, a busca pelo it é a busca por Deus.
Cito diretamente para não parecer louca sozinha:
“Mas há também o mistério do impessoal que é o ‘it’: eu tenho o impessoal dentro de mim e não é corrupto e apodrecível pelo pessoal que às vezes me encharca: mas seco-me ao sol e sou um impessoal de caroço seco e germinativo. Meu pessoal é húmus na terra e vive do apodrecimento. Meu ‘it’ é duro como uma pedra-seixo. A transcendência dentro de mim é o ‘it’ vivo e mole e tem o pensamento que uma ostra tem. Será que a ostra quando arrancada de sua raiz sente ansiedade? Fica inquieta na sua vida sem olhos. Eu costumava pingar limão em cima da ostra viva e via com horror e fascínio ela contorcer-se toda. E eu estava comendo o it vivo. O it vivo é o Deus.”
Clarice Lispector era avessa a classificações. Nascida na Ucrânia e trazida aos dois meses de idade para o Brasil, incomodava-a o rótulo de estrangeira. Judia, sempre minimizou a relevância de sua etnicidade. Mesmo a classificação como escritora lhe era desagradável: em uma entrevista em 1977 para a TV Cultura, ela disse que “às vezes, o fato de me considerarem escritora me isola. Me impõe um rótulo”. Insistia que não era uma escritora profissional. De acordo com Nelson Vieira, professor da Brown University, Lispector explorava a noção de uma identidade livre de amarras - de certa forma, uma pós-identidade:
“Sua escrita transcende as noções sociais de opressão, marginalização e vitimização, porque ela se concentra na problemática de uma identidade ou existência fixas (...) Lispector lutou contra qualquer ameaça à autonomia individual, recusando-se a ser colocada rigidamente em uma função ou categoria específicas.”
Em substituição a uma identidade fixa, Lispector propõe um “sentimento oceânico de unidade com o universo”, para utilizar uma expressão de Vieira. Água Viva é um livro que tateia no escuro - algumas vezes de forma ridícula, mas corajosamente ridícula - para expressar o que nos une. A aniquilação do eu, pronome pessoal, não pode deixar de ser uma destruição (“Tenho que me destituir para alcançar cerne e semente de vida” / “Construo algo isento de mim e de ti – eis a minha liberdade que leva à morte”), mas também é o caminho para a transcendência. Essa é a epígrafe de A Paixão Segundo G.H., uma citação de Bernard Berenson:
“A complete life may be one ending in so full identification with the nonself that there is no self to die.”
Novamente, Água Viva:
“Eu me ultrapasso abdicando de meu nome, e então sou o mundo. Sigo a voz do mundo com voz única.”
Lispector representou uma ruptura na literatura brasileira, em geral preocupada em articular uma ideia de nação. Lida hoje, sua escrita também carrega um contra-discurso. Há algumas décadas, era aceitável que um grupo restrito de pessoas se entendesse como o “homem universal”, o padrão de pessoa “neutra”. Na ressaca dessa onda, surgiram pensadores que desafiaram a ideia de universalidade e propuseram que somos todos altamente específicos. O papel da pessoa consciente seria descobrir a exata intersecção que compõe o seu lugar social - o cruzamento entre gênero, raça, sexualidade e posição financeira que definiria o seu local no mundo. A auto-identificação e auto-definição tornaram-se a base do discurso a respeito do que é ser uma pessoa. Clarice é uma estranha nesse ninho - a humanidade para ela não está no que nos diferencia, mas sim no que nos aproxima do outro.
“Passa-se a sentir que tudo o que existe respira e exala um finíssimo resplendor de energia. A verdade do mundo, porém, é impalpável. Não é nem de longe o que mal imagino deve ser o estado de graça dos santos. Este estado jamais conheci e nem sequer consigo adivinhá-lo. É apenas a graça de uma pessoa comum que a torna de súbito real porque é comum e humana e reconhecível.”
Referências:
Tradução livre de Jewish Voices in Brazilian Literature, de Nelson Vieira. Capítulo 3, Clarice Lispector: a Jewish Impulse and a Prophecy of Difference
Todas as citações são de Água Viva, na ausência de indicação em contrário. (ÁGUA VIVA (EDIÇÃO COMEMORATIVA) | Amazon.com.br)
Meu amigo Robson achou Água Viva intragável e me perguntou: faz diferença passar da página dez? Respondi que faz a mesma diferença que ver 5 metros quadrados de uma pintura de Pollock em vez de 5 centímetros quadrados. Então ele criou esse bot aqui, que publica uma porção pequena de uma pintura de Pollock a cada hora: www.twitter.com/pollock_bot