A primeira sensação foi de alívio. Dos quase dez anos em firma de contabilidade, Brian Thompson absorvera uma tendência ao adiantamento crônico que seu assistente, ainda embriagado pelos vinte e poucos anos de idade, não conseguia acompanhar. Era a primeira vez que chegava ao destino antes do chefe, e se empertigou na entrada do auditório com seu terno novo e recém adquirido orgulho.
O anúncio anual de resultados aconteceria no salão de conferência do Hotel Hilton, em Midtown Manhattan. Brian e seu assistente haviam chegado de Minnesota na noite anterior. Às 7:15 da manhã, o assistente saiu do seu quarto com uma maleta de cadernos personalizados do UnitedHealth Group. Às 7:23, um pouco ofegante do trajeto, chegou na porta do auditório e montou uma pilha caprichosa. Abriu o seu melhor sorriso: um a um, entregaria os cadernos para os analistas de investimento que eram o público-alvo do evento. Às 7:30, tinha um olho na fila de analistas e o outro na virada do corredor, de onde o chefe apareceria a qualquer momento e presenciaria seu minúsculo momento de glória.
7:40 e nada. 7:42 e nada. 7:45 e o assistente tinha uma mão úmida estendida para um analista e a outra telefonando para o chefe. A pilha minguava e nada. O último analista e nada. A apresentação começaria sem o principal executivo.
O telefone do assistente tocou meia hora depois, mas a ligação vinha da polícia. Brian Thompson, presidente do UnitedHealth Group, havia sido encontrado morto às 6:45 da manhã. Por pouco, muito pouco, uma bala a menos nas costas, ele teria chegado antes das 7:00, como era de costume.
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A lei da inércia é implacável. Num ambiente livre de atrito, um corpo em movimento tende a permanecer em movimento, enquanto um corpo parado está fadado a não sair do lugar. Por algum motivo, nos preocupamos mais em não saber começar do que não saber parar, e a primeira palavra que mancha a página é sempre a mais difícil.
Shakespeare tinha o hábito de abrir as suas peças com personagens secundários. Sem dúvida os especialistas têm uma explicação melhor, mas eu que também brigo com a página tenho a minha: é um truque para burlar a dureza do começo, uma forma de achar a entrada pelas beiradas.
Hamlet, uma história de inação, começa com os guardas do castelo. O rei da Dinamarca está morto, mas seu fantasma voltou para assombrar a família, e os guardas o avistaram mais de uma vez no palácio. O príncipe Hamlet, preterido para o trono, é chamado para presenciar a aparição do pai. Pela via sobrenatural, o espectro revela o que a realidade já dava a entender: o rei havia sido assassinado por seu irmão Cláudio. Quando o príncipe retorna do exterior para o enterro do pai, Cláudio não havia apenas reivindicado o trono, como havia consolidado seu poder através de um casamento às pressas com a rainha viúva. Na dinâmica das cortes, uma morte encomendada talvez fosse a primeira hipótese a se considerar. Hamlet, mesmo com as evidências naturais e sobrenaturais, não sabe o que fazer ou em quem acreditar. Ele se consome pela dúvida.
A sucessão ao trono é dos temas mais comuns de Shakespeare, um assunto caro à realeza que o financiava e à sociedade medieval que enchia teatro. A quem diga, porém, que Hamlet representa uma ruptura em relação aos outros príncipes do bardo: de todos os herdeiros logrados, ele é o primeiro que age como um homem moderno. Harold Bloom fala da autorreflexão, das dúvidas existenciais e do ato de questionar o seu lugar no mundo. A gente que briga com o Instagram, porém, reconhece a modernidade por caminhos mais parcos: sem saber o que fazer da vida, Hamlet opta pela performance. Ele monta uma peça de teatro.
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“Temos aqui um homem que é revolucionário, famoso, bonito, jovem, inteligente - alguém que parece ser moralmente bom, o que é difícil de encontrar”: assim Taylor Lorenz descreveu, em entrevista recente, o assassino de Brian Thompson. Jornalista que fez carreira no New York Times e no Washington Post, Lorenz é a tradutora não-oficial da cultura de Internet para o mainstream. Na sua fala para a CNN, ela pretendia explicar a admiração que algumas mulheres sentem por Luigi Mangione, mas o comentário sobre o que é raro de se achar no mercado amoroso, seguido de um risinho cúmplice, trai uma intérprete não tão desapaixonada.
Mesmo antes de ser identificado pela polícia, a primeira foto divulgada de Mangione já anunciava o que ele se tornaria aos olhos de certo público. Num momento de descuido, um dia após o fatídico anúncio de resultados, a câmera de segurança do hostel em que se hospedava capturou um Mangione sem máscara, sorrindo - flertando? - com a pessoa atrás do balcão da recepção. Nos dias que se seguiram, a multidão de admiradores não se limitou ao fã clube das porta-de-cadeia. Jornalistas e demais opinadores vibravam, em diferentes níveis de discrição, em favor de quem foi lá e fez justiça com as próprias mãos, quem fez esses milionários pagarem pela cobiça, quem mostrou para esses executivos de seguradora qual a vontade do povo - alguém que, finalmente, não só postou um GIF de guilhotina como fez alguma coisa.
A guilhotina não é exatamente uma tecnologia nova, tampouco a sede de sangue surgiu ontem, mas algo na febre Luigi parecia atual. Será a tecnologia uma simples ferramenta, mero modo de dar vazão a antiquíssimos impulsos da mente humana? Ou, uma vez construída, a guilhotina não só é moldada pelo homem mas o molda de volta: o palco constrói o gosto pelo espetáculo, a promessa da lâmina caindo cria um clima de expectativa, o som seco da cabeça que aterriza no cesto dá a deixa para o grito. O fenômeno Luigi parecia não só estar acontecendo na Internet, mas ser um produto da Internet, do jeito de interagir com o mundo que a Internet cria.
Antes da rede de computadores, houve a televisão. O argumento do parágrafo anterior é roubado de Neil Postman, que, escrevendo nos anos 1980, tinha os vícios da própria época contra os quais lutar. Postman diz que o meio não é neutro - a tecnologia influencia o modo como agimos na realidade. Forma determina conteúdo. Pensemos num jornal televisivo. Os assuntos pulam a cada três minutos. A voz do apresentador muda de uma lamentosa narração do último conflito no Oriente Médio para um empolgado giro pelas celebrações da Páscoa ao redor do mundo. Os comerciais mostram que tudo isso opera na mesma realidade em que você pode comprar o novo cereal fit do mercado. O modo de pensar que a televisão cria é descontínuo, visual e privilegia o impacto emocional sobre nuances argumentativas. Postman vai mais longe: a tecnologia influencia não só a realidade, como inventa suas próprias ilusões. A pessoa que assiste ao telejornal poderia se pensar um cidadão consciente, que se mantém informado dos últimos acontecimentos. Para Postman, ele é um espectador - por natureza, passivo - do show da miséria humana.
Quem segura o controle remoto pensa que está se informando, mas está se entretendo e acumulando uns pedaços de mundo mal digeridos. Neil Postman morreu antes de nos dizer, mas e quem segura o celular, faz o quê? A Internet é menos passiva. Ela pede para você postar, compartilhar, comentar. A Internet te dá a ilusão de estar respondendo ao mundo. Ela te convence de que você está fazendo alguma coisa.
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Hamlet está deprimido. O pai está morto, a coroa não é sua e a mãe correu para se enlaçar com o tio, que além do mais o proíbe de retornar para os seus estudos no exterior. Mesmo sua namorada não representa o atrativo de antigamente. O que ele não faz: coordena um golpe contra o novo rei, arregimenta apoiadores, afia a espada. O que ele faz: conversa com um fantasma, solta uns sarcasmos, profere um solilóquio.
Após o famoso monólogo contemplando o suicídio, Hamlet se reúne com a trupe de teatro que visitava o castelo. Ele arquiteta um plano: no lugar da peça que haviam planejado, o grupo encenaria na ficção a traição que se suspeitava que Cláudio perpetrara na realidade. Caso Cláudio reagisse mal à performance - assim pensa Hamlet - estaria indiretamente confessando sua culpa.
Tudo segue como Hamlet planejou. Quando o personagem semelhante ao tio assassina o rei, Cláudio se levanta, perturbado, e dispensa os atores. Hamlet sente-se validado por acreditar no fantasma do pai. Seu truque, porém, não passa de um falso espelho. Shakespeare em nenhum momento resolve a ambiguidade da reação do rei, que poderia apenas ter se sentindo ofendido ou mesmo ameaçado na legitimidade de seu trono. Hamlet enxergara na situação o que já estava determinado a concluir. A peça dentro da peça é um jogo de espelhos, mas não da forma como Hamlet antecipava. A confissão que foi supostamente extraída é tão interpretativa a ponto de não justificar uma atitude pública e contundente. A performance é um giro em falso, movimento sem ação.
Performance, espelhamento e paralisia também são os temas que Jia Tolentino escolhe para explorar a cultura de Internet. Embora toda a interação humana tenha um componente de teatro - afinal, estamos sempre cientes de como nos apresentamos aos olhos dos outros, reservando a poucos nossas cenas de bastidores - a Internet cria um palco contínuo para uma plateia generalizada. Mesmo quando não estamos nesse palco, medimos nossa experiência pela comparação com os outros atores e pelos olhos de um espectador imaginado. Em contraste às promessas inicias da Internet, estabelecida nas bases de fóruns semi-anônimos, Tolentino investiga os resultados da consolidação do mundo online na órbita de páginas pessoais.
O perfil pessoal promete autoexpressão, mas molda um “eu” performático. Embora nasça de um desejo genuíno de compartilhamento, a consciência da plateia altera o processo. O “eu” que se coloca na Internet é um reflexo construído, uma representação de como queremos ser vistos. Tudo que colocamos em páginas pessoais é, a princípio, suspeito: mesmo as opiniões são formas de expressão de identidade, de mecanismos de associação por grupos.
A maior novidade, porém, é o simulacro de ação. Enquanto nenhum espectador de telejornal se ilude de estar fazendo alguma coisa, as mídias sociais criam a percepção de movimento, sem a realidade da ação. Jia Tolentino fala da elevação do discurso a um ato político, mesmo revolucionário, sem contrapartida no que os marxistas chamariam de realidade material. Enquanto articular uma ideia pode ser o primeiro passo para uma tomada de atitude, o risco das mídias sociais é que o ímpeto criativo se esvaneça no discurso, a performance esgote a ação. Na Internet, o mundo é muito grande e somos todos minúsculos. Não temos poder de ação sobre 95% dos assuntos aos quais somos expostos diariamente, e sobre os quais nossa reação parece ser de grande importância. O que estamos produzindo em nossos gritos digitais, além de imagens distorcidas de nós mesmos?
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Para sair da inércia precisamos de um choque, mesmo que silencioso.
Não é claro qual a força que moveu Luigi Mangione. Quando sua conta no Twitter foi identificada, os perfis que seguia indicavam uma pessoa de centro-direita. Ele sofria com dor nas costas crônica, mas vinha de família abastada, de modo que não havia história pessoal que justificasse a radicalização contra seguradoras de saúde. Como pretenso agente político, deixou seu manifesto. Para um engenheiro formado numa Ivy League, o documento de três páginas tinha um erro crasso: a UnitedHealth nunca foi, nem de longe, a quarta maior empresa americana, como ele afirmou. A justificativa parecia ter sido arremedada às pressas num McDonalds de estrada. Alguns meses antes do assassinato, ele havia parado de interagir com amigos e família. A movimentação no Twitter havia cessado. Quando rompeu seu silêncio, Brian Thompson levou um tiro nas costas. Luigi foi preso. Os promotores federais declararam a intenção de pedir a pena de morte.
Após o teatro, o enredo de Hamlet parece sair do controle. O príncipe abre mão de deliberadamente avançar contra o rei, mas acaba matando seu conselheiro por acidente. Exilado da corte por conta de seu crime, Hamlet retorna da viagem frustrada como um novo homem. Não é claro como a sua cabeça mudou no trajeto, mas o resultado cobre o palco de cadáveres. Hamlet mata o rei, assiste a morte da mãe e também perde a vida no processo. A angústia da paralisia não é resolvida por ação cuidadosa. A frustração acumulada termina em explosão.
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Agora, a qualquer momento, a classe trabalhadora vai se levantar. A revolução está no horizonte, basta virar a esquina da História.
Passam os anos e nada. Passam as décadas e nada.
No começo do século 20, Vladimir Lênin resolve o problema, na Rússia, com a ideia de “vanguarda revolucionária”. A classe trabalhadora, por si só, não iria além de reformas graduais ao sistema capitalista. Caberia aos intelectuais, treinados na ideia da luta de classes, educar, organizar e liderar os trabalhadores no processo revolucionário. Herbert Marcuse, nos anos 1960, chega a uma conclusão semelhante. O proletariado dos EUA, acostumada às benesses do consumo, certamente não iria se levantar. Só os artistas, os intelectuais e os grupos marginalizados, por viverem fora dos encantos do sistema, teriam a capacidade imaginativa de conceber a mudança radical.
Para lidar com a realidade da paralisia, Marcuse eleva o status da performance. A estética, e não a ação, vira a nova fronteira da política. Um dos membros centrais da New Left, seria injusto dizer que Marcuse não acreditava mais na ação política. Mas ele descola sua luta da realidade produtiva, na qual os trabalhadores estão engendrados, para os grupos que ele escolhe justamente por estarem menos implicados nela.
A inflação do discurso atinge seu ápice na Internet. No mundo digital, a palavra não é um preâmbulo para a ação, mas cada vez mais um fim em si mesmo. Como fala Jia Tolentino, os perfis pessoais colapsam as noções de identidade, opinião e ação. Você é o que você expressa publicamente, mas representação e realidade não só são duas esferas independentes, como a primeira parece esgotar a necessidade da segunda. Como no teatro grego, o grito da plateia é catártico, e cada um sai de sua briga digital já um pouco purgado.
A resolução, no entanto, é pouco satisfatória. O mal-estar da geração digital, ao longo do espectro político, é ser exposta a tantas indignidades e não chegar a lugar nenhum, é o ter o mundo ao toque dos seus polegares e não ter poder para nada, é navegar informação e frustração, opinião e inação, perfomance e paralisia. Quem sai da inércia, nessas condições, não emerge com um plano cuidadoso e bem pensado. O que resta é a foto de cadeia, o corpo na esquina. Luigi Mangione é o herói da geração da Internet, e é emblemático que entregue sua vida numa explosão performática, para não alcançar nada.
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Sair do palco também é complicado. É tentador fechar as cortinas no ápice da emoção, numa nota de desespero, com os cadáveres caídos. Como Shakespeare resolveu esse problema?
Hamlet termina com o trono da Dinamarca caindo nas mãos do jovem rei da Noruega, Fortinbras, que também teve seu pai assasinado. Fortinbras aparece no início da peça, mas logo é relegado ao segundo plano. Enquanto acompanhamos Hamlet, ele está ocupado na conquista da Polônia. Quando o trono da Dinamarca se torna vacante, Fortinbras reaparece e a plateia é relembrada desse homem de ação silencioso, que ficou esquecido no ato anterior. Embora a morte da casa real dinamarquesa traga um senso de futilidade, já que a batalha interna de Hamlet foi em vão, o reaparecimento de Fortinbras dá a satisfação da completude.
O desespero é fácil. A Internet está aqui, e o mundo que ela criou não vai desaparecer. Somos todos culpados, estamos todos embrenhados na dinâmica de discurso e inação, de frustração e explosão. Mas o que a realidade pede da gente é uma resposta. Dado o mundo como ele é, o que você vai fazer agora?
Harold Bloom // Neil Postman // Jia Tolentino // Herbert Marcuse
obaa olha quem voltouuu e com tudooo!!
Bah, costuraste muito bem todos os entes do enredo. Um baita texto. Parabéns pela sensibilidade e clareza. Ótimo