Onde está você? Cadê seu irmão? (2/54)
Esse é o segundo texto do meu ano de Torá. Na primeira porção de leitura, ocorreu a Criação, seguida pela transgressão de Adão e Eva, o assassinato de Abel por Caim e a introdução de Noé. A parashá da semana é Noah, que vai da história do Dilúvio até a geração de Abraão, passando pela Torre de Babel (Gênesis/Bereshit 6:8 a 12:1).
Escrita toda em terceira pessoa, a Bíblia tem um narrador oculto. A doutrina da revelação - a ideia de que o texto tem inspiração divina - coloca em xeque o narrador impessoal: a Bíblia é contada sob a ótica de Deus olhando para as pessoas.
As histórias de Noé e da Torre de Babel são desconcertantes: porque algumas das principais religiões do mundo adoram uma divindade que causa destruição, que mata quase toda a humanidade e que depois sabota a tentativa de falar uma única língua? Porque teríamos fé nesse Deus? Se pensarmos que o narrador oculto na verdade é Deus, que esse é o épico da humanidade contado pelo ponto de vista de Deus, o sujeito do ato de fé é radicalmente diferente. A questão muda de “porque eu acreditaria nesse Deus?” para “porque Deus teria fé nessas pessoas?”. Vendo como as pessoas são, porque o Criador não destruiria tudo?
A história de Noé, de fato, é uma reversão da Criação. As águas que se separaram para revelar a terra firme devolvem ao planeta a situação de um alagamento indiferenciado. O mundo ficou por um fio, que foi a existência de um homem em quem Deus ainda pudesse acreditar: Noé, “um homem justo, íntegro entre seus contemporâneos". Tudo que Deus precisava era de uma pessoa, uma única pessoa de mérito, para que a Criação não tivesse sido um erro.
Do Dilúvio, ouve-se um eco das perguntas que chamam as pessoas à responsabilidade no Éden: onde está você? o que você fez? Quando Deus descobre que Adão e Eva comeram o fruto proibido, Ele confronta primeiro Adão, que aponta para Eva: “a mulher que puseste junto de mim me deu da árvore, e eu comi”. Eva também joga a bola adiante: “a serpente me seduziu e eu comi”. O castigo de Deus vem não só pela transgressão, mas pela falha em assumir a responsabilidade pelas próprias escolhas. Noé é a pessoa que se manteve correta numa geração corrupta, que andou com Deus por caminhos abandonados. A existência não só de todas as pessoas como de todos os animais deve-se a um homem que em seu tempo levou a sério as perguntas que Deus fez à humanidade: onde está você? o que você fez?
The Book of Genesis, Illustrated by R. Crumb
Entre os heróis da Bíblia, Noé é único em dois aspectos: pelo nível de sua exaltação, não oferecida a mais nenhuma figura, e pela baixeza de sua degradação, sem rival entre os patriarcas e as matriarcas. Noé é a única pessoa a qual a Torá oferece um conjunto de termos elogiosos tais quais “um homem justo, íntegro entre seus contemporâneos, e andava com Deus". Nem Abraão, o primeiro judeu, nem Moisés, o libertador do povo, merecem louvor semelhante. No entanto, não há velhice e morte mais indignas do que as de Noé. Sarah é enterrada com glórias por Abraão, na primeira transação de terras registrada na Bíblia; José foi embalsamado num sarcófago, como a nobreza egípcia; Noé envelhece como um bêbado do qual até seus filhos se envergonham, e sua morte é uma passagem seca.
O Zohar, texto fundamental do misticismo judaico, compara Noé negativamente a Moisés. A analogia que os comentaristas usam é que há duas maneiras de se aquecer em tempos frios: uma pessoa pode vestir um casaco e proteger a si mesma, ou pode acender uma fogueira e aquecer a comunidade. O mérito pessoal de Noé salvou toda a criação, mas mérito individual não é o suficiente. Não basta que um homem seja justo num deserto: as pessoas serão julgadas pelo seu efeito nos outros.
A poesia da Bíblia é calcada em repetições que conectam as histórias e aprofundam as questões. À primeira geração de pessoas, Deus coloca as perguntas “onde está você? O que você faz com a sua liberdade?”. Para a segunda geração, a pergunta é "onde está o seu irmão?”. Quando Caim mata Abel, Deus vai atrás dele: “Onde está o seu irmão?”. Caim furta-se de responsabilidade: “por acaso sou o guardião do meu irmão?”. Noé é um herói incompleto pois ouviu o chamado da responsabilidade pessoal mas não o da obrigação comunitária. Ele não era um líder - sua retidão não eleva a dos outros. Ele responde a questão “onde está você?" em um mundo corrupto, mas evade a pergunta "cadê o seu irmão?", que chama a iluminar seus iguais.
Desse personagem falho, derivam todas as nações: Grécia, Ásia Menor, Mesopotâmia, Península Arábica e norte da África - a genealogia de todo o mundo conhecido é delineada através dos descendentes de Noé, na primeira tentativa conhecida de construir uma história universal. Cada nação sai de um descendente específico e dá origem a idiomas e costumes singulares. De repente, vem Babel.
A fábula de Babel parece uma interrupção estranha. Em algumas poucas linhas, o tema parece mudar abruptamente, e a premissa da história - “todo o mundo se servia de uma mesma língua e das mesmas palavras” - contradiz a multiplicidade de idiomas do capítulo anterior. Será esse um remendo mal feito, um trabalho de alfaiataria em que se enxerga as costuras?
Nesse conjunto de pessoas notáveis que é a Torá, salta aos olhos a falta de protagonistas no episódio da Torre de Babel. Adão e Eva, Caim e Abel, Noé, as sequências genealógicas - o material da Bíblia são as pessoas, individuais e singulares, e em Babel subitamente elas não se diferenciam uma da outra. A explicação mais usual para esse episódio é de que se trata de um conto de húbris, dos riscos da arrogância do ser humano em se alçar a uma condição que só cabe ao divino. Alguns comentaristas indicam um caminho interessante e mais compatível com as narrativas anteriores: já advertidas sobre deixar de se responsabilizar pelas próprias escolhas e por não tomar conta do outro, as pessoas agora são alertadas a não se dissolver em coletivos, por mais atraentes que eles sejam.
De acordo com essa leitura, a Torre de Babel é uma alusão ao poder imperialista dos assírios, a nação militar que conquistou a Babilônia e toda a região próxima. A Assíria era uma potência comercial que impôs homogeneidade linguística e monetária por onde passava, um verdadeiro trator cultural na multiplicidade do mundo antigo. Mas as pessoas foram feitas singulares e os povos foram criados em toda a sua diversidade. O império da moda pode ser atraente em seus luxos, mas as pessoas não devem se dissolver em suas promessas. Assim a unidade artificial de Babel é destruída, assim o Império Assirio é estraçalhado.
Quando acontecem as tragédias, há pessoas que se perguntam: se há Deus, onde ele está? Onde está Deus num mundo em que há fome? Onde está Deus num mundo em que há doença? Onde está Deus num mundo em que há morticínio? Nesta parashá de dupla destruição, a pergunta de Deus, o narrador oculto, é sempre: onde estão as pessoas? Onde está você num mundo em que há fome? Onde está você num mundo em que há doença? Onde está você em um mundo em que há morticínio? Você está se escondendo em um grupo? Você que se acha muito correto, cadê o seu irmão?
Referências:
Hillel, citado no Pirkei Avot (Ética dos Pais):
Pirkei Avot, Ética dos Pais - Torá e Estudos (chabad.org)
“Se eu não for por mim, quem será por mim? E se estou apenas para mim, o que sou eu? E se não agora, quando?”
Covenant and Conversation, Righteousness is not leadership (Rabino Jonathan Sacks)
Righteousness is not Leadership (Noach 5781) - Rabbi Sacks
“Yet what exactly was Noah supposed to do? How could he have been an influence for good in a society bent on evil? Was he really meant to speak in an age when no one would listen? Sometimes people do not listen even to the voice of God Himself. We had an example of this just two chapters earlier, when God warned Cain of the danger of his violent feelings toward Abel – “’Why are you so furious? Why are you depressed?… sin is crouching at the door. It lusts after you, but you can dominate it” (Gen. 4:6-7). Yet Cain did not listen, and instead went on to murder his brother. If God speaks and people do not listen, how can we criticize Noah for not speaking when all the evidence suggests that they would not have listened to him anyway?
The Talmud raises this very question in a different context, in another lawless age: the years leading to the Babylonian conquest and the destruction of the First Temple.
Aha b. R. Hanina said: Never did a favourable word go forth from the mouth of the Holy One, blessed be He, of which He retracted for evil, except the following, where it is written, “And the Lord said unto him: Go through the midst of the city, through the midst of Jerusalem, and set a mark upon the foreheads of the men that sigh and cry for all the abominations that are being done in the midst thereof” (Ezek. 9:4).
The Holy One, blessed be He, said to Gabriel, “Go and set a mark of ink on the foreheads of the righteous, that the destroying angels may have no power over them; and a mark of blood upon the foreheads of the wicked, that the destroying angels may have power over them.” Said the Attribute of Justice before the Holy One, blessed be He, “Sovereign of the Universe! How are these different from those?”
“Those are completely righteous men, while these are completely wicked,” He replied. “Sovereign of the Universe!” said Justice, “They had the power to protest but did not.”
Said God, “Had they protested, they would not have heeded them.”
“Sovereign of the Universe!” said Justice, “This was revealed to You, but was it revealed to them?” (Shabbat 55a)
According to this passage, even the righteous in Jerusalem were punished at the time of the destruction of the Temple because they did not protest the actions of their contemporaries. God objects to the claim of Justice: Why punish them for their failure to protest when it was clear that had they done so, no one would have listened? Justice replies: This may be clear to you or to the angels – meaning, this may be clear in hindsight – but at the time, no human could have been sure that their words would have no impact. Justice asks: How can you be sure you will fail if you never try?
The Talmud notes that God reluctantly agreed with Justice. Hence the strong principle: when bad t hings are happening in society, when corruption, violence and injustice prevail, it is our duty to register a protest, even if it seems likely that it will have no effect. Why? Because that is what moral integrity demands. Silence may be taken as acceptance. And besides, we can never be sure that no one will listen. Morality demands that we ignore probability and focus on possibility. Perhaps someone will take notice and change their ways – and that “perhaps” is enough.”