Chegou mais um Pessach, a festa da liberdade. É a minha festa preferida - uma história de travessia, uma festa em que se lavam as lágrimas do povo judeu com música e com comida. Esse ano, porém, não me deu alegria comprar a matzá e o gefilte fish (sim, claro que compro pronto). Se Pessach tem algum sentido que não uma historinha que as crianças leem na Hagadá, esse sentido tem que ser renovado anualmente: um êxodo das amarras que ainda nos prendem. Desde 2018, parte da comunidade judaica brasileira caiu em todas as armadilhas que encontrou. Está na hora de nos libertarmos, pois a alternativa é sermos fiadores dos algozes.
Primeiro, em tempos de Weintraubs e Wajngartens, vale a pena alguns lembretes sobre a variedade política entre judeus. Paul Singer, fundador do PT: judeu. Jaques Wagner, governador pelo PT, Ministro da Casa Civil sob Dilma Rousseff: judeu. Bernie Sanders, senador americano, declarado socialista: judeu. Trotski e Marx: judeus. Rosa Luxemburgo e Emma Goldman: judias. Alguns dos movimentos proletários mais atuantes na Europa, da Revolução de Outubro na Rússia à Resistência Antifascista na Espanha: judeus. Não há nada de fundamentalmente judaico no apoio que certos setores da comunidade ruidosamente ofereceram a Bolsonaro em 2018, e que resistem a retirar de maneira igualmente pública, mesmo em face à catástrofe. Talvez sirva de exemplo uma comunidade da diáspora menos provinciana: em 2020, 70% dos judeus dos EUA votaram no candidato democrata.
Mas não é o voto de 100 mil judeus que me preocupa. Mesmo que toda a comunidade brasileira tivesse caído no mito do Messias e do Paulo Guedes, o que está longe de ser verdade, seríamos uma gota no oceano de lama que foram os 57 milhões de brasileiros que cravaram 17. O que me preocupa, o que me angustia e o que me revolta é virarmos testa de ferro para o massacre.
Estudei em colégio judaico e posso dizer que conheço o que se discute nas rodas de classe média. Sei do desconforto com o PSOL e com os militantes que queimam a bandeira de Israel. Sei do quentinho que deu quando um candidato abraçou a bandeira sionista - ele não gosta dos gays, dos quilombolas e há controvérsias sobre as mulheres, mas vejam que grande amigo dos judeus! Antes ter a bandeira pisoteada na rua, pois ao menos podemos nos refugiar no papel de vítimas, do que passar pela vergonha de vê-la empunhada pelos algozes. Não podemos evitar que nos façam juras de amizade, mas cabe a nós o pensamento crítico, tradição verdadeira do Povo do Livro.
Recapitulo o que temos visto acontecer e sobre o que nossos líderes comunitários tem calado. Em 24 de Março, Filipe G. Martins, assessor da presidência, fez o gesto do White Power em sessão do Senado. Desde então, simulei ajeitar meu casaco algumas vezes, e em nenhuma delas me pareceu muito natural deixar 3 dedos bem estendidos em formato de W. Em um tweet, refutou as acusações alegando ser “um judeu” (nosso povo tem sua parcela de sociopatas, mas ao Filipe G. Martins sugiro que vá procurar sua turma). No começo do mês, a fina flor do bolsonarismo baixou em Israel para procurar a cura milagrosa para o Covid-19; deviam estar pedindo iluminação divina, pois o que o governo de extrema-direita de Netanyahu fez foi seguir a cartilha do lockdown e vacina. Desde 2018, não há um protesto verde-e-amarelo em que não se estenda também a bandeira azul-e-branca. A bandeirinha de Israel em um perfil em rede social virou a marca indelével do extremismo. Alguns se sentem validados pois o primeiro-ministro de Israel retribui a atenção que qualquer mal intencionado está disposto a lhe dar. Devia ser óbvio, mas vale enunciar: Netanyahu não é um porta-voz dos judeus, ele é só um político safado; nem o coração mais sionista, que acredita no direito dos judeus a um Estado e à autoderterminação, é obrigado a apoiar cegamente o governo da vez. Netanyahu, inclusive, tem escolhido repetidamente a aliança com cristãos evangélicos, em detrimento das vozes críticas que se levantam entre os judeus da comunidade global.
Alguns estudiosos debruçaram-se sobre a ligação entre os evangélicos e Israel, especialmente nos Estados Unidos. As respostas tendem a ir para o campo religioso: os evangélicos, alguns grupos com mais fervor, outros com menos, vêem a imigração de todos os judeus para Israel como condição precedente ao retorno de Jesus. Veja, na pandemia em que vivemos, entendo o apelo de profecias do final dos tempos. Estamos há uns 3 mil anos à espera do apocalipse. Também gosto de crenças religiosas obscuras e semi-obscuras: maniqueísmo, gnosticismo, zoroastrismo. Mas arrisco a dizer que, no fenômeno do bolso-sionismo, a questão religiosa é, no máximo, superfície; no mínimo, desculpa. Resisto a acreditar que Eduardo Bolsonaro, de arminha na mão, é atraído por Israel porque foi tocado pela mansidão do espírito de Jesus. Escolheram Israel como símbolo dos sonhos que eles têm e deveriam nos envergonhar: uma teocracia militarizada. Escolheram os judeus como minoria amiga que justifica o massacre das demais. Eles não são nossos amigos. Eles são amigos dos judeus que inventaram: o povo da Bíblia e da metralhadora.
Em 25 de Março, a FISESP (Federação Israelita do Estado de São Paulo) fez um post no Facebook em homenagem ao Dia Nacional do Orgulho Gay. Choveu cristão fundamentalista mandando judeu ir ler Torá. A nossa Torá é e sempre foi um documento vivo. Os judeus lêem Torá, comentam a Torá e discutem Torá por milênios. O Talmud é um grande debate entre rabinos. Maimônides, no século XII, revisou toda a Torá com as lentes da filosofia aristotélica. A Kabbalah ressignificou completamente uma religião legalista em termos místicos. Nas letras imutáveis da Torá, os significados são múltiplos e abertos. Eles não querem o Estado de Israel que permite o aborto e descriminaliza maconha recreacional. Eles querem o país com Bíblia e sem Constituição. Eles querem a Bíblia que eles inventaram e tentam impor aos outros - literal, autoritária, sem espaço para o contraditório. Eles querem teocracia.
A tragédia de Israel foi ter se tornado um estado militarista, uma nação armada até os dentes. Que o Estado judeu seja uma potência de guerra, que o jovem israelense tenha alistamento obrigatório, que lidemos com mutilados e traumatizados, isso foi o sonho de quem? Esse foi o pesadelo do qual a gente não acordou. O fetiche da arminha pertence à turma do Eduardo Bananinha, que conhece a milícia e a macheza de rede social. O que eles vêem na gente é um povo que resolve os problemas na bala; eles querem um Estado militar. A amizade dessa turma tem que nos alarmar, e não nos envaidecer; eles gostam do que há de pior em nós.
Que ninguém se engane: o que cobre a gente de vergonha é o que eles escolheram como símbolo. Eles querem aprender com Israel como se trata minoria. Que sejamos culpados mil vezes se o tratamento que querem dar para pobre e preto no Brasil seja um reflexo do que eles enxergam nos palestinos.
O que um Filipe G. Martins revela, ao se refugiar no judaísmo para se defender do rótulo de supremacista branco? Primeiro, revela o próprio racismo. Os judeus são um povo que desenvolveu os próprios critérios de aceitabilidade dentro da comunidade. O mais comum é o nascimento de ventre judeu, mas as diversas linhas judaicas tem abordagens diferentes. Há um elemento em comum: a participação comunitária, o reconhecimento do ser judeu perante a comunidade, em ritos que renovam e atualizam o judaísmo em cada etapa da vida - brit milá, bat e bar mitzá, casamento, morte. Há a observação das festas, que marcam o ritmo de vida judaica. O que não há: a noção de “uma gota de sangue”, um princípio notadamente racista. Um trisavô cristão-novo não faz de ninguém judeu. Familiares judeus não fazem de ninguém judeu. A noção de “uma gota de sangue” alimentou o segregacionismo negro nos EUA e jogou cidadão laicos, que não se consideravam mais judeus, nas câmaras de gás; ela nao é a maneira como nos definimos.
Em segundo lugar, essa fala revela que o judeu virou minoria de estimação. É a minoria que o governo afaga, enquanto manda as outras para o abate. É isso que a gente quer ser? Os representantes do bolsonarismo nunca mostraram nada que não desprezo pelas reivindicações do movimento negro, do movimento indígena, do movimento feminista. Temos que nos perguntar porque conosco é diferente. Somos mais merecedores ou somos mais convenientes? As entidades representativas da comunidade judaica estão dominadas por empresários e advogados, que querem tudo nessa vida menos enrosco com o governo. A comunidade tem recursos para se autogerenciar e não pede nada ao Estado; é um grupo sem demandas do poder público. Somos a minoria bem-comportada sobre a qual não há o que se preocupar.
Nos EUA, uma diáspora judaica mais numerosa e mais madura, numerosas entidades comunitárias assumem a responsabilidade do tikkun olam - de olhar para o mundo, e não só para a gente. A Anti-Defamation League é vocal sobre todas as formas de extremismo de direita e esta lado a lado dos movimentos latinos, negros e LGBT na luta contra discursos de ódio. O Never Again Action é um grupo de judeus ativistas contra os abusos do sistema de imigração americano. O Jewish Voices for Peace advoga pelos direitos dos palestinos. A comunidade brasileira tem muito a aprender com as nossas contrapartes americanas sobre onde estão as nossas alianças.
Se Pessach tem algum sentido, esse sentido tem que ser lembrar que já fomos o lado mais fraco. Essa semana, um portal de notícias que não pode ser acusado de esquerdismo publicou um texto que diz que ideologia por trás da condução da pandemia é eugenista (A peste e a supremacia | O Antagonista). Que não nos deixemos enganar pelo bezerro de ouro que veste a bandeira de Israel. Que não reconheçamos aquela bandeira como a nossa. Que não nos aliemos a quem tem desprezo pelos fracos.
Uau! Quanta coisa aprendi sobre a cultura judaica e política ao mesmo tempo. Muito bem escrito.