What's in a name? That which we call a rose by any other name would smell as sweet.
Shakespeare, Romeu e Julieta, II, ii (47-48)
Faz um calor de rachar e estou na companhia de três mulheres cujos nomes se escondem. A tarde inteira diante de mim, aberta, para escrever e ruminar a semana. Empilho-as ao meu lado, com suas denominações falsas ou ausentes: George Eliot, Elena Ferrante, J. Amigas ocultas. Passo o dedo nas lombadas, em busca de uma ideia para puxar, como um fio solto.
Comecei o projeto da newsletter sem querer, no impulso, e aos poucos ele vai tomando corpo. (Talvez só dê para começar as coisas assim, sem fanfarra, e quando vemos a festa já está rolando e basta nos deixarmos levar). Passei a refletir nas escolhas que fiz sem pensar. O desenho que achei nos primeiros resultados para a busca “Matisse woman sketch”, devo substituir por uma foto pessoal? A abreviação do meu nome, lembrando o Josef K. de Kafka, devo expandir até a completude? Vários leitores sabem quem sou e conhecem meu rosto, e ainda assim a saída do semi-anonimato me parece desconfortável.
Olho para a minha pilha de livros. J, a mulher que escreveu a Bíblia. Conforme a hipótese documental, amplamente aceita mesmo em meios religiosos, os cinco primeiros da Bíblia seriam uma costura dos trabalhos de escritores distintos, cuja peculiaridade se nota pelo estilo, prioridades narrativas e modo de se referir a Deus (Javé ou Elohim). São eles: Javista (J), Eloísta (E), Sacerdotal (P) e Deuteronomista (D). A fonte javista, com seu humor irônico, é a que narra o grosso das histórias femininas; comparados a Sara e Rebeca, sob a pena de J, os patriarcas se apagam. Em o “O livro de J”, Harold Bloom conjectura que na verdade temos uma Lady J: uma aristocrata da corte de Salomão, três mil anos atrás, escrevendo histórias que nada tinham de religiosas.
O anonimato de J, assim como o dos outros escritores bíblicos, revela uma diferente concepção de autoria. Desde o Renascimento, aprendemos a associar a arte à figura do gênio, do indivíduo peculiar. Ser artista passou a ser a realização do desejo de ser uma pessoa especial. As Belas Artes nascem como uma tentativa de diferenciar o artista-gênio, aquele que transita entre a nobreza, do artesão de guilda, um trabalhador manual. O artesão faz parte de uma linhagem de ofício; seu nome não acrescenta valor à obra final. O artista é aquele cujo nome é pronunciado com reverência, quando o lemos na plaquinha do museu: Rafael, Michelangelo, Leonardo.
Os romances nos são tão familiares que esquecemos de como são recentes. Por milhares de anos, a pessoa individual não produzia uma história a qual associava seu nome na capa. A tradição épica, a mitologia, a narrativa bíblica - todas foram criações coletivas, estranhas à noção de autoria. Tolstói, em sua fase cristã, defende que o que chamamos de “cultura popular” é a única cultura verdadeira; a Arte-arte, aquela que vem sem qualificativos, seria a cultura de elite. Nesse contexto de narrativa comunal, que se entranha na vida cotidiana, torna-se menos escandalosa a ideia de uma J mulher. Como escreve Virginia Woolf, em “Um teto todo seu”:
Eu me arriscaria a supor que Anônimo, que escreveu tantos poemas sem assiná-los, foi muitas vezes uma mulher. Foi uma mulher que Edward Fitzgerald, creio, sugeriu ter feito as baladas e as cantigas folclóricas, cantarolando-as para seus filhos, distraindo-se com elas na roda de fiar ou nas longas noites de inverno.
Mas volto à pilha na minha escravinha: George Eliot, pseudônimo de Mary Ann Evans, que figura entre os maiores escritores em língua inglesa. Mary Evans circulava nos meios intelectuais da época e publicava crítica literária e traduções sob nome próprio, mas escolheu um nome masculino para a ficção. Das autoras vitorianas, Virginia Woolf escreve:
O anonimato corre-lhes nas veias. O desejo de se ocultar ainda as possui. Nem mesmo agora elas se interessam tanto pelo vigor da fama quanto os homens, e, falando em termos gerais, passarão por lápides ou postes sem sentir o desejo irresistível de neles gravar os respectivos nomes (....)
Em um período em que as mulheres já assinavam os próprios livros, Mary Evans escolheu a liberdade de não ser julgada nem pelo trabalho pregresso nem pelas expectativas de seu gênero. George Eliot não é apenas a Mary Evans que se apaga, o nome que não se registra na lápide, mas também a possibilidade de criar com menos amarras. O que há em um nome? Mesmo as inscrições em pedra desaparecem. As mulheres não escreveram seus nomes por medo, por pudor, mas quem sabe também por sabedoria? Há vantagens de não se deixar fixar.
Chego, por fim, em Ferrante - atualmente talvez a pessoa autora mais famosa que escreve em anonimato. Se tomarmos como verdade seus motivos declarados, Ferrante os resume dizendo: “Prefiro que o canto para a escrita permança um lugar escondido, sem vigilâncias ou urgências de qualquer tipo” (“Frantumaglia”, 2016). Os livros se sustentam sem uma persona pública, ou não tem nada a dizer. A ocultação de Ferrante é antes um ato de confiança extrema do que de inibição: a autoria pode se apagar, pois a obra fala por si.
Fraca, mas sinceramente, defini essa newsletter como uma busca. Parece destoante associar um projeto em construção a uma identidade, uma palavra final, ou a alguma pretensão de autoria. Somos herdeiras de uma cadeia de texto anônimo - de texto que sai “da vida comum que é a vida real, e não das vidinhas à parte que vivemos individualmente”, nas palavras de Virginia Woolf. “Extraindo a sua vida da vida das desconhecidas que foram suas precursoras" (sim, mais Woolf) - em um cantinho da Internet, um jeito bonito de tentar trazer à luz o próximo texto e, quem sabe, ser a desconhecida de alguém.
Ariela, sua News é um dos meus pedaços favoritos da internet. Seu texto, sua cultura, sua visão de mundo… eu simplesmente babo. Abraça a sua herança e continue a transformá-la com suas palavras e com orgulho - o resultado é lindo demais.
Ariela, acordei hoje e me peguei esperando pela tua news, como espero por um abraço apertado de uma amiga querida. A tua escrita tem transformado os meus domingos, e me acompanham durante toda semana. Mais uma vez, estou encantada com as reflexões que você apresenta tão lindamente. Um abraço carinhoso ❤️