Esse é o nono texto do meu projeto bíblico. Em 2020, eu me encantei com essas histórias de três mil anos, esse legado coletivo de texto e interpretação. A parashá (“porção”) a qual essa edição da newsletter se dedica é Vayeshev (“E ele se estabeleceu”, Gênesis 37:1-40:23), que conta a história de José, da venda como escravo até sua prisão no Egito. Por ora, vamos deixar de lado o protagonista. Esse é um texto sobre as pessoinhas.
Qual o nosso tamanho no mundo? Vivemos como personagens principais de nossos dramas particulares: nossos planos, nossas alegrias, nossas dores. Quando menos esperamos, porém, a escala da existência se revela estranhamente diferente. Pegamos um avião e enxergamos pela janela como somos pequenos, um ponto de luz à distância. Entramos no metrô lotado e, entre uma cotovelada e outra, percebemos: eu sou a multidão que cerca todos os outros. Estudamos a história de civilizações antigas e nos tocamos: um dia, as vidas que o tempo apagou serão as nossas. Mesmo diante da enormidade do mundo, no entanto, só temos uma vida para viver, e ela é indelegável. Essa é a tensão que atravessa o Gênesis: somos todos o pó da terra, mas também somos a única chance que temos - como diz a Mishná Sanhedrim 4, cada pessoa é obrigada a dizer: o mundo foi criado para mim, pois uma só pessoa pode ser a fonte de toda a humanidade.
No texto anterior, falei sobre a questão central do Gênesis ser a continuidade. As preocupações são reprodução e descendência. Uma geração segue a outra. O texto aponta esperançosamente para o futuro: cada personagem um elo numa cadeia de eventos que desemboca no leitor, a quem cabe renovar o texto no presente e legá-lo ao futuro. O Gênesis fala da criação de uma família, o Êxodo da criação de um povo, e a Bíblia Hebraica se encerra com uma sequência de profetas, cuja missão não é nada menos do que redimir toda a humanidade. A Bíblia é uma construção coletiva na qual cada corrente de texto desagua em rios cada vez mais largos. No entanto, a narrativa nunca perde de vista a escala individual. O destino coletivo não raro está nas mãos de uma única pessoa. Essa pessoa não precisa ser parte da tribo; na verdade, ela não precisa nem ser nomeada.
Vayeshev começa com José, o filho favorito de Jacó, tendo a ingenuidade de compartilhar seus sonhos de grandeza com os irmãos mais velhos. Um dia, quando os irmãos estão pastoreando ovelhas em Shechem, Jacó pede que José vá encontrá-los para depois lhe relatar o andamento dos negócios. Distantes do pai, os irmãos encontram o sonhador dedo-duro, com sua túnica colorida de filho preferido, e tramam a sua venda como escravo. Toda a narrativa depende desse momento decisivo: é como escravo que José chegará ao Egito; é lá que ele subirá ao poder; é para o Egito que ele levará sua família; gerações após sua morte, é no Egito que o povo será escravizado, e é do faraó que os hebreus fugirão para emergir como um povo guiado pela lei. Naquele momento, o épico todo depende da existência de um personagem anônimo: o estranho que vê José perdido, à procura dos irmãos, e o orienta na direção correta.
A Bíblia tem um estilo elíptico; ela silencia mais do que revela. Quando Abraão está a ponto de sacrificar seu filho, a narrativa não nos conta o que ele estava pensando. Quando Jacó se transforma em Israel, não nos são oferecidas explicações. Quando os matriarcas e patriarcas morrem, não raro eles são dispensados da história em poucas palavras. Mas um anônimo dando orientações a um jovem perdido recebe a dignidade de algumas linhas (“Um homem o encontrou andando errante pelos campos e este homem lhe perguntou: ‘Que procuras?’. Ele lhe respondeu: ‘Procuro meus irmãos. Indica-me, por favor, onde apascentam seus rebanhos’. O homem disse: ‘Eles levantaram acampamento daqui; eu os ouvi dizer: vamos a Dothan’. José partiu à procura de seus irmãos e os encontrou em Dothan”). Sem saber, toda a história estava nas mãos do homem que sequer recebe um nome. Se repararmos bem, há inúmeros exemplos na Bíblia nos quais a cadeia de eventos se equilibra nas costas de pessoas aparentemente secundárias. O texto desafia, assim, a noção de personagem coadjuvante.
Em seguida, a narrativa corta para o causo de Tamar, a heroína improvável. Aqueles que tiveram o último contato com a Bíblia quando crianças talvez não se lembrem, pois a história é impublicável na versão infantil. Tamar é uma cananita, uma mulher de fora da tribo, que se casa com um dos filhos de Judá. Ela ficou viúva, situação na qual, de acordo com a lei antiga, um dos irmãos do falecido marido deveria tomá-la como esposa; os filhos da nova união seriam considerados herdeiros legais do falecido. O irmão de fato a toma como esposa, mas pratica coito interrompido para não ter que criar um filho que legalmente não seria seu. Deus o castiga e Tamar fica novamente viúva. Judá então deveria oferecer a Tamar um terceiro filho como esposo, mas, talvez temendo um destino semelhante aos dois primeiros, ele falha em sua obrigação. Tamar não aceita a sina de viúva sem filhos e trama para fazer a lei valer pelos próprios meios. Fingindo-se de prostituta, ela engravida de Judá, garantindo assim a continuidade de sua linhagem. Por que essa história desconfortável é importante? Por que uma cananita que se deita com o sogro recebe um capítulo inteiro no Gênesis? Entre outras coisas, porque ela é a matriarca da Casa de Davi. Novamente, a narrativa parece se perder numa trilha secundária, apenas para sabotar a ideia de que há coadjuvantes. Sem Tamar, não haveria Davi, Rei de Judá e Israel.
A estrutura narrativa do Gênesis reflete a dualidade da Criação. No começo do livro, foram oferecidas duas alternativas para o surgimento da vida humana: na primeira, as pessoas são o ápice da Criação, forjadas à imagem e semelhança de Deus; na segunda, todos viemos do barro e para o barro retornaremos. O épico do Gênesis aponta sempre para o grandioso e para o coletivo, mas as histórias são fincadas no pequeno e no individual.
Qual o nosso tamanho no mundo? Martin Buber relata o ensinamento do rabino Simcha Bunim, mestre hassídico do século XIX: Cada pessoa deve ter dois bolsos, para servir de lembrete de acordo com a necessidade. Quando estiver se sentindo triste e desconsolado, ela retiraria um papel do bolso direito e leria: “O mundo foi criado por minha causa”. Mas quando se sentir confiante e poderosa, deveria alcançar o bolso esquerdo e encontrar as palavras: “Sou apenas pó e cinzas”. Somos todos a junção desses dois mundos.
A Juliana de Albuquerque publicou um artigo na Folha sobre a lenda dos trinta e seis homens justos, que também fala sobre o potencial das pessoas pequenas: Desconhecidos ensinam que é possível fazer o bem mesmo em situações de risco - 25/01/2022 - Juliana de Albuquerque - Folha (uol.com.br)
Prazer!
Tenho recebido pessoas novas nesse espaço e me ocorreu que nunca me apresentei formalmente. Tenho 32 anos e sou uma judia secular. Cresci no interior de São Paulo, mas morei muitos anos na capital. Hoje vivo em Nova York, para onde me mudei a trabalho faz alguns anos. Se você responder esse email, vem direto para mim e a gente pode bater um papo :)
Down here below, Carrie Mae Weems
Adorei esse final <3