Olá! Essa é uma edição do projeto bíblico, escrito sob perspectiva judaica e não-religiosa. A cada duas semanas, eu volto para esse texto antigo e tento analisá-lo com novos olhos, sem compromisso com dogmas ou doutrinas. O que uma das nossas narrativas mais antigas e influentes diz sobre o que significa ser uma pessoa? O trecho a que essa edição se refere é Shemini (“Oitavo”, Levítico 9:1-11:47).
E vos santificarei e sereis santos, porque Eu sou santo.
É uma manhã de verão e o sol convida os turistas para outras paragens. Você, porém, já acordou um pouco cansada. Em circunstâncias normais, enrolaria um pouco mais na cama. Mas não: está de férias, num país distante, e isso traz as suas obrigações. Levanta, compra café no centro histórico e chega no Palacio de Bellas Artes antes de abrir. Checa o celular: pouco antes das dez da manhã na Cidade do México.
Mal dá tempo de sentar nas escadarias e o segurança já avisa que o museu está abrindo. Ou ele disse que lá não pode sentar? O cansaço não ajuda na compreensão do espanhol. De qualquer forma, a bilheteira está aberta e solitária. Solitários também estão os murais, dois andares deles, pensados para escala sobre-humana, mas expostos agora para uma plateia de um.
Você não entende muito de mural, não há para quem fingir, então vai direto para o mais famoso: “O homem controlador do universo”, de Diego Rivera. Como outras pinturas, essa se tornou notável não só por seu mérito artístico, mas também pelas peripécias de seu destino. Na década de 1930, a obra havia sido encomendada pela família Rockefeller, uma das mais ricas dos EUA, para a sua propriedade luxuosa em Nova York. Diego achou por bem retratar Marx e Lênin segurando uma bandeira vermelha no meio do Rockefeller Center, e a pintura foi considerada propaganda comunista. Os Rockefeller mantiveram a amizade com Diego, mas decidiram se livrar de seu trabalho. Um mural, porém, não se deixa descartar de maneira elegante; não é um quadro que se tira da parede. O mural tem uma corporeidade específica: ele existe numa parede, de um prédio, de uma cidade. Os Rockefeller decidiram pintar por cima da obra. Anos depois, as autoridades mexicanas ofereceram uma parede no Palacio de Bellas Artes para que Diego Rivera reproduzisse o mural apagado.
Na Cidade do México, você se aproxima da obra pelos cantos. Procura, à direita, as figuras que causaram discórdia. Mas a pintura logo lhe atrai para o centro, para o homem gigante que dá nome ao mural. Desde os assírios e egípcios, os murais têm uma lógica narrativa própria: para decodificar a história que a imagem quer contar, a chave interpretativa está no centro. De acordo com a antropóloga Mary Douglas, em "Levítico como literatura”, a Bíblia usa a estrutura de um mural. O Pentateuco seria um mural pintado com palavras. Antes de pensarmos na Bíblia como um livro, a Torá (nome pelo qual os judeus se referem ao Pentateuco) foi um rolo de pergaminho. No ato físico da leitura, desenrola-se um pergaminho do centro para as extremidades. Na Torá, tudo aponta para o centro. E nessa posição encontramos o Levítico, o livro dos sacerdotes.
Entre os estudiosos da Bíblia, os sacerdotes nem sempre têm boa fama. De acordo com a teoria de maior aceitação acadêmica, o Pentateuco é o resultado da costura de quatro versões ou tradições narrativas: javista, eloísta, sacerdotal e deuteronomista. O escritor sacerdotal é o responsável não só pela redação do Levítico, como também pelo grosso do trabalho de edição da Bíblia. Foram os círculos sacerdotais que moldaram a Bíblia de acordo com as suas prioridades e cravaram o livro de sua autoria, o Levítico, no coração do texto. Acima da mulher irônica que Harold Bloom cogita ser a escritora javista, acima do pensador abstrato que é o eloísta, acima do político hábil que é o deuteronomista, paira a fonte sacerdotal, que domou e costurou o texto. O que diz essa voz que paira sobre as águas? Quais são suas prioridades? Qual a sua visão de mundo?
O sacerdote bíblico não é um representante da espiritualidade. Nada no Levítico aponta para reza, misticismo, experiências com outros planos de existência. Para a nossa sensibilidade, o escritor sacerdotal é desagradável, ou mesmo repulsivo, em sua obsessão com o corpo. O livro abre com os ritos de sacrifício animal, que não são apenas um símbolo, mas a materialização do corpo morto. Ele segue para as regras de alimentação, os animais próprios e impróprios para consumo. Continua com descrições de doença e comportamento sexual. As imagens do Levítico são de carcaça, vísceras, menstruação e sêmen derramado. Talvez de maneira surpreendente, porém, ele não cria essas imagens apenas para rejeitá-las. O Levítico não despreza o mundo físico, não o interpreta como a sombra imperfeita de um mundo imaterial. No Levítico, não há dualidade. Não existe o mundo imperfeito da matéria e o mundo ideal do espírito. O nosso corpo é problemático, e esse é o mundo. É esse mundo problemático que você vai fazer santo.
No capítulo 11, o Levítico define as regras de alimentação. Trata-se do esqueleto da kashrut, a dieta judaica, que segue vigente em meios religiosos. O motivo para a existência de regras se encontra no fim do capítulo: porque a Fonte da Vida é santa, você honrará essa fonte e será santo. Mas qual seria essa noção de santidade? Para o escritor sacerdotal, o que é levar uma vida que honra seu potencial humano? Qual a sua relação com o corpo?
As regras de kashrut, no arco narrativo da Bíblia, são a culminância de uma série de alianças com a corporeidade. A Bíblia conta a história mítica de nossa relação com a comida, e esse é um conto de violência. No Jardim do Éden, Adão e Eva são retratados como vegetarianos. Deus lhes concede dominância sobre os outros animais, mas apenas lhes permite os vegetais como alimento:
E Deus os abençoou e Deus lhes disse: "Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e conquistai-a, e dominai os peixes do mar e as aves dos céus e todo animal que rasteja sobre a terra. E Deus disse: “Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente que está sobre a face de toda a terra, e toda a árvore em que há fruto que dê semente, será vosso para comer” (Gênesis 1:28-29)
A situação muda apenas depois do Dilúvio. Deus se decepciona com a crueldade das pessoas e decide recomeçar a humanidade do zero. Após o apocalipse do qual sobrevivem apenas Noé e sua família, porém, Deus se arrepende da destruição. Ele reconhece que as pessoas podem ser violentas e promete não levantar a própria violência contra elas. Estabelece-se então um novo pacto com a humanidade, o pacto de Noé e sua família, que ecoa o pacto firmado com Adão e Eva:
E Deus abençoou a Noé e a seus filhos e lhes disse: “Frutificai, multiplicai-vos e enchei a terra. E vosso temor e vosso medo estará sobre todo animal da terra, sobre toda ave dos céus, sobre tudo que a terra produz do que se arrasta nela, e sobre todos os peixes do mar; em vossas mãos eles foram entregues. Tudo que se move vos servirá de alimento, como toda verdura e erva que já vos dei” (Gênesis 9:1-4)
O texto se esforça para que o leitor perceba a semelhança com o trecho do Éden, então deduzimos que as diferenças são significativas. Primeiro, a relação das pessoas com os outros animais passa da dominância para o medo. Segundo, é permitido que os seres humanos se tornem carnívoros. Como o tema do Dilúvio é a violência, os estudiosos indicam que o pacto de Noé é justamente um mecanismo de gestão da violência. Deus já reconheceu que as pessoas podem ser cruéis, mas ele não vai lhes virar as costas. Suas criações são imperfeitas, mas ele não vai abandoná-las. Ele cria um novo pacto do mundo desencantado, um caminho de santidade que acolhe a humanidade defeituosa.
Na Bíblia, esse texto de três mil anos, os pactos são selados com sangue. A aliança com Deus passa pelo corpo, por nossa materialidade defeituosa, e não pelo espírito. Gerações depois de Noé, a narrativa nos conta que Deus firma uma aliança específica com a descendência de Abraão. A aliança é selada com o corpo - o sangue da circuncisão. A Bíblia Hebraica se afunila então para narrar o pacto específico dessa família, da qual o Levítico se considera herdeiro.
O sacerdote que redige o Levítico entende que o pacto divino se faz com a carne. Ele não fala de orações. Ele não escreve sobre crenças. Ele não liga para a interioridade, essência ou outras abstrações. Para o Levítico, existe Deus e existe o corpo - e ele é santo em todos os seus defeitos, porque Deus, o criador, é santo. Ele também luta para conter a própria violência.
No capítulo 11, o Levítico completa o arco narrativo do alimento. Adão e Eva eram vegetarianos, Noé vira carnívoro e a descendência de Abraão passa a ser seletivamente carnívora. Proíbe-se o consumo de inúmeros animais, como porcos, crustáceos e predadores em geral. Em outros capítulos, proíbe-se o consumo de sangue (tchau, carne mal passada) e a ingestão simultânea de carne e leite, o corpo morto da mãe com o alimento do filho (tchau, cheeseburger). A relação com o alimento vai do idealizado (o Éden), para a concessão à violência (o pacto pós-dilúvico) e chega no reconhecimento de que os assuntos do corpo não são concessões à nossa natureza imperfeita, mas são o material mesmo da santidade.
Devemos muita coisa aos gregos antigos, esses contemporâneos dos antigos hebreus. Às vezes nem sabemos que somos devedores. Por exemplo, a nossa relação com materialidade. Quando pensamos na divisão entre alma e corpo, mundo das ideias e mundo material, o que sentimos por dentro e o que somos por fora, devemos colocar umas moedinhas mentais na conta dos gregos. Essa dualidade é grega; mais especificamente, platônica. Os romanos se fizeram herdeiros intelectuais da Grécia e continuaram sua tradição. Quando o cristianismo nasce como filho rebelde do judaísmo, dois mil anos atrás, o platonismo entra em sua corrente sanguínea através de uma união improvável: o casamento com o Império Romano. A dualidade corpo-espírito é greco-romana-cristã. Para o Levítico, somos carne. Somos corpo. O pacto divino é aquele que se manifesta em um corpo, de uma pessoa, de uma família. O corpo é problemático ou material do divino? A resposta é: sim. Ambos ao mesmo tempo, sem dualidade.
Como o mural, não existimos sem nossas paredes. Elas não são o mal necessário para a pintura; elas são o material da obra. No centro desse mural que é o Pentateuco, a visão sacerdotal organiza a religião hebraica não como um pacto de espíritos, mas de corpos. Um pacto de corpos santos mesmo que problemáticos, mesmo que violentos, mesmo que sujeitos a serem apagados.
Enquanto escrevia esse texto, além de ter quase morrido, vi algumas newsletters amigas falando sobre corpo:
Caramba, se é esta a newsletter que você consegue escrever quando um avião está prestes a cair, não tem absolutamente NADA capaz de derrubar a qualidade do teu texto!!
O momento que sento para ler sua newsletter é sempre um belo momento do dia. E este texto está particularmente excelente. Pensar essa não dualidade talvez seja uma das questões mais exigentes do nosso tempo.