Acabei de ver uma exposição no Hirshhorn Museum na qual a artista dormiu em diferentes espaços públicos e registrou a influência do ambiente em seus sonhos. Como o lugar que habitamos marca a nossa mente?
Escrevo esse texto de uma rodoviária da qual o ônibus lotado partiu sem mim. O próximo vem em quatro horas. Como a exasperação, a luz branca e o banco duro marcam o texto? Esse aqui é breve e fala de amizades literárias e obras menores.
Das vantagens da literatura recente, sinto que uma característica pouco apreciada é a possibilidade de fazermos amigos imaginários.
Não importa quantas vezes você leia o Épico de Gilgamesh, os sumérios que escreveram o poema - as pessoinhas que contam a história, mas que também limpam a casa e discutem com a mãe - não falam com você. Tenho lido a Bíblia de perto e não me sinto ligada aos anônimos escritores hebreus. Mesmo Shakespeare, mais próximo de nós, não se deixa enxergar através do texto. Mas lemos Knausgaard e ele está ali. Tiramos Foster Wallace da estante e encontramos suas ansiedades, suas neuroses. Abrimos um Vonnegut e ele está rabiscando pelas páginas. Podemos falar: meu amigo Karl Ove, meu amigo David, meu amigo Kurt.
Na literatura recente, é aceitável que o autor transpareça na página. Quem sabe os dedos melados do autor façam dessas obras menores, mas quem liga? Há um prazer especial de encontrar a voz familiar de um amigo. Um livro também também é um portal para uma pessoa que você quer visitar.
Cada autor tem uma ou duas obras-primas pessoais dentro de si. Meu amigo Kurt escreveu cinco livros antes e oito livros depois de Matadouro-Cinco, que fez de todos os outros longos prefácios e interessantes epílogos. Ainda assim, tenho lido os outros Vonnegut, os Vonnegut-aquecimento, os Vonnegut-alongamento. Quando penso nas minhas amigas que estão distantes, raramente me recordo dos momentos extraordinários. Sinto falta dos cafés da manhã e das caminhadas, das coisas que aconteceram quando não estávamos prestando atenção. Um Kurt Vonnegut menor é como um cafezinho com um velho amigo.
Eu gosto do Kurt que escreve com a lógica doida dos sonhos. Gosto do Kurt que fala de coisas sérias como se estivesse achando graça. Gosto do abandono com que diz coisas simples e absurdas sem medo de ser tolo. Gosto de umas frases como essa:
As for literary criticism in general: I have long felt that any reviewer who expresses rage and loathing for a novel or a play or a poem is preposterous. He or she is like a person who has put on full armor and attacked a hot fudge sundae or a banana split.
(“Quanto à crítica literária em geral: há muito tempo sinto que qualquer crítico que expresse raiva e aversão por um romance, uma peça ou um poema é ridículo. Ele ou ela é como uma pessoa que vestiu uma armadura completa e atacou um sundae de chocolate quente ou uma banana split.”)
Nessa pandemia, eu fiz uma coisa meio louca pela primeira vez: construí amizades online. Faz um ano que falo todos os dias com duas pessoas que existem no WhatsApp - uma que conheci pessoalmente, uma que nunca vi. Essa segunda pessoa lançou o primeiro livro e eu fiquei orgulhosa como se tivesse sido eu. O livro chama O pote de milk-shake.
Também mandamos contos para uma revista literária e os dois foram publicados na mesma edição. Eu não tive coragem de reler o meu, mas fui direto na história do meu amigo Matheus.
Laurie Anderson: The Weather. Hirshhorn Museum
Na próxima edição, voltamos à narrativa bíblica. Aos amigos dessa newsletter, fica o pedido descarado para que a levem a outras caixas de entrada:
a cada linha o sorriso foi se alargando e a identificação foi transbordando dos olhos. sinto uma coisa parecida na minha amizade com o Kurt também! gostei demais do texto!
Viva o milk-shake do Matheus! Grande amigo de leitura de contos e oficina de escrita, escritor fino e sagaz. Foi uma dica dele que me trouxe até aqui, onde me esclareço e me espanto com suas crônicas e estudos.