Esse final de semana teremos o evento sobre newsletters e estou muito empolgada! Serão dois dias de conversa entre pessoas que escrevem newsletters no Brasil, nos mais variados temas e formatos. Vou participar da mesa “Newsletter também é literatura?”. Ainda dá para se inscrever aqui. Para aquecer os motores e também dar a chance para os interessados refletirem sobre o tema antecipadamente, compartilho alguns pensamentos nessa edição especial. Venham participar, fazer comentários e perguntas! Vai ser uma alegria poder conhecer alguns de vocês, mesmo que por Zoom.
Leitura como descoberta
Essa publicação não se chama “A Diletante” à toa: preparem-se que vou resolver uma questão acadêmica com uma definição peremptória e pessoal. Literatura é a leitura que se faz para fins não instrumentais. Como gastronomia é aquele comida que você come porque sim, porque é bom, porque você quer passar por aquela experiência, literatura é o texto que se lê sem um fim prático em mente. O que não significa que a leitura literária não tenha consequências reais - você só não sentou à mesa acompanhado de uma tabela nutricional. Você se deixou levar. O leitor confia que há no texto algo a descobrir.
E isso é arte?
Um desavisado entra na ala contemporânea de um museu. Uma tela na parede, com algumas pinceladas bruscas, é acompanhada por uma plaquinha laudatória. O nome do artista, seu movimento cultural e o seu significado histórico são descritos em um tom que beira ao místico. Nosso observador alterna a vista entre a grandeza das palavras e o rudimentar das tintas. E isso é arte?
As paredes da galeria são um marcador de tempo: isso é algo diante do que você tem que parar. Você poderia passar reto se essa pintura estivesse em um tapume de obra, mas se ela está na parede, o galerista quer dizer: aqui há algo a descobrir. (E provavelmente há algo a descobrir nos locais mais rotineiros.)
Em momentos de tédio imprevisto, eu leio livros no celular. Em teoria, não há impeditivo para que literatura experimental seja publicada integralmente em stories do Instagram ou fios no Twitter - nossos olhos já estão acostumados com o meio. Na prática, isso não acontece. O objeto livro age como um marcador de tempo: aqui há algo pelo qual vale a pena parar. A newsletter é um formato que diz: esse texto tem outro ritmo. Não precisa segurar a tela para as palavras não desaparecerem. Não precisa reagir, curtir ou compartilhar. Aqui está algo diante do que você pode simplesmente parar.
Internet como lugar de experimentação
Um romance entre duas capas é uma obra acabada. O texto passou por algumas rodadas de escrita e reescrita, foi para as mãos do editor, do preparador, do diagramador. Chega no leitor como fato consumado: aqui está a obra lapidada, o melhor que deu. Esse leitor imaginário, a julgar pelas redes sociais, faz um chá numa xícara bonita e senta na poltrona para ler entre os gatos.
A newsletter, por sua vez, é parte de um fluxo: obra aberta. Ela é construída na rotina e lida na rotina. O texto está na caixa de entrada quando acordamos; passamos os olhos mesmo antes de levantar. Uma nova edição chega enquanto aguardamos na fila; o texto é um companheiro imprevisto. Do outro lado, o escritor rascunha o texto entre intervalos; escrevo metade das palavras no bloco de notas do celular, no metrô para o trabalho. Não sei onde quero chegar com a newsletter, não há clímax ou grand finale - ela segue comigo, o leitor segue comigo.
No fluxo do dia-a-dia, a internet é uma possibilidade de germinar como escritor e como leitor. Escrever se aprende escrevendo, e a regularidade da publicação é um experimento na descoberta da nossa voz e do nosso estilo. No caminho, o leitor também se acostuma com a nossa entonação.
Contínuo de leitura e escrita
Alain de Botton escreveu não ironicamente que a lojinha é a parte mais importante do museu - e não pelos motivos amargos que poderíamos esperar. Enquanto as galerias do museu inspiram devoção - ou a perplexidade calada de quem acha que deveria sentir algo mais profundo, pensar algo mais inteligente - a lojinha é o lugar no qual as pessoas se permitem engajar com a arte de igual para igual. (Quem sabe esse pôster da Tarsila ficaria bem na sala? Quem sabe essa caneca de Monet possa fazer parte da coleção?). Enquanto a Grande Arte é pontual, e nosso encontro com ela é esporádico, o souvenir é a arte da rotina, que se infiltra no dia-a-dia.
É comum colocarmos a internet em oposição à leitura (“sai da internet e vai ler um livro!”). Nos círculos de aspirantes a escritor, vejo também a angústia pela imposição de presença online (“precisa ter uma base de seguidores para se lançar no mercado?”). Mas a internet é uma ferramenta sem volta, e a newsletter é um bom caminho para sairmos tanto da relação antagônica entre o mundo livresco e o mundo online como da relação instrumental (a internet como mero divulgador, como periferia do núcleo duro literário). A palavra publicada - editor, revisor, capa bonita - pode existir num contínuo de texto com a palavra digital - ensaiada no cotidiano, imiscuída na rotina. O livro é a obra acabada que vai para a estante. A newsletter é a canequinha que a gente carrega para a vida - e que nos lembra de vez em quando de aspirar por algo maior.
muito bom seu extp/reflexão
Gostei, Ariela. Acho que, com paciência e uma dose ousadia, a gente vai encontrando nosso espaço nos vários mundos que habitamos.