O texto de hoje era para ser parte do ciclo bíblico, mas eu peguei COVID e estou me recuperando. O bezerro de ouro vai ficar para semana que vem. Nesta edição, vamos jogar conversa fora. Não estou em condições de ter conversa de bar, então me acompanha e pega um chá com bolachas.
Constantemente fingimos que nossa percepção dos dias atuais não parecerá ridícula em retrospecto, simples porque não parece haver outra opção. No entanto, há outra opção, e a opção é: devemos começar a partir da premissa de que - com toda a probabilidade - já estamos errados. E não "errados" no sentido de que estamos examinando questões e chegando a conclusões incorretas, porque a maioria de nossas conclusões são racionais e coerentes. O problema está nas próprias perguntas.
Chuck Klosterman, “But what if we’re wrong?”
Uma realidade óbvia, mas difícil de assimilar: todas as pessoas que já viveram estavam na fronteira do seu tempo. Em 534, em 1012, em 1766, em 2019: todas as pessoas estavam no ápice da acumulação de conhecimento até aquele momento. Suas verdades pareciam sólidas. Seu entendimento de mundo era coerente e refletido. Olhando pelo retrovisor, todas estavam erradas. O passado já foi um presente provisório.
Pense na Grécia Antiga - com sua mitologia, suas guerras e seus escravos. Pense na Europa medieval - seus feudos, sua escolástica, seu comércio emergente. Pense em nós: as características que nos farão marcantes, hoje invisíveis de tão banais, em centenas de anos serão curiosidades históricas. (E se você acha que podemos não ter centenas de anos adiante, bem-vindo: cada geração que passou também se enxergava no precipício da História. O apocalipse é um gênero literário de mais de 2 mil anos. Em pouco mais de um século, o mundo já acabou ao menos três vezes, com bons motivos, para muitas pessoas: Primeira Guerra Mundial, Segunda Guerra Mundial e Holocausto, corrida nuclear).
Falta-nos mesmo a capacidade de imaginação para conceber a amplitude de nossas ilusões, a provisoriedade de nossas crenças. Em “But what if we’re wrong?”, Chuck Klosterman propõe uma regra de bolso: se você consegue imaginar uma alternativa, provavelmente ainda não está indo longe demais. Cada geração tem seus críticos e seus idealistas, seus pensadores e artistas - ainda assim, em 1500, quem conceberia o mundo de hoje? Olhando para trás, como eram evidentes as lacunas de sua visão de mundo. Como eram supersticiosos. Como viviam seus dramas de honras e de conquistas, de pecado e de salvação, como se suas vidas dependessem disso. E dependiam. Do que dependem as nossas, de um modo tão íntimo e tão tácito que não conseguimos conceber, nem em crítica? Pensamos que a posteridade vai nos julgar, e não sem razão - é o que fazemos com os que vieram antes de nós. Mas esquecemos que não seremos julgados de acordo com valores que conseguimos compreender. Nas palavras de Klosterman: seremos analisados com os valores de um futuro que ainda não foi escrito. “E essa nem é a parte mais difícil. A parte mais difícil é aceitar que estamos construindo algo com elementos que ainda não existem”. O presente só faz sentido em retrospecto, sob os olhos de um futuro que não nasceu.
Bacana, mas e os exemplos práticos? Como uma pessoa que não só lê livros mas também cuja identidade de alguma forma está ligada a ser uma pessoa que lê livros, tenho pensado que talvez já estejamos todos errados. Talvez o romance já tenha morrido como forma de viva de cultura, e por isso investimos tanto tempo em “incentivar a leitura” - invariavelmente a leitura de romances, pois não são necessárias associações de incentivo à leitura de tweets ou textões no Instagram. Na época áurea do romance, ele era o crack cultural; era o feed que você não conseguia parar de rolar. A Madame Bovary de Flaubert é uma viciada em romances. Ela destrói a própria vida na busca do que os stories do Instagram da época lhe prometiam.
A gente estuda um pouco e aprende que o romance é um jeito novo de contar histórias. “Dom Quixote” (1605) é considerado o primeiro romance moderno, que satiriza e joga a pá de cal nos antigos romances de cavalaria. O problema é: os romances de cavalaria e a épica tradicional não sabiam que a pá de cal tinha sido jogada. Seus autores provavelmente continuaram a produzir, convencidos de sua importância, cada vez mais criadores de nicho, enquanto já se tateava o material do romance contemporâneo. Pergunto-me do que reclamavam, como se convenciam de que eram os bastiões de uma forma de arte elevada, em contraposição à arte menor que surgia.
Eu tenho uma especialidade, que é a crise existencial preventiva. Faz algumas semanas, decidi escrever um romance. Comprei um caderninho novo e uma caneta superfaturada. Desde então, tenho me dedicado a achar motivos pelos quais não escrever um romance. Como esse é meu talento particular, tenho sido bem sucedida. Um fio no Twitter, enviado por uma amigo bem intencionado, acendeu uma luzinha fraca, que ao longo da semana virou uma árvore de Natal completa. O fio era mais ou menos assim: se você quer publicar um romance, comece a criar uma comunidade através de um podcast, uma newsletter, uns fios no Twitter. Em seguida, quem sabe uma editora chancele a sua arte, o seu romance, e quem sabe você consiga converter uma parcela das pessoas que te acompanham por outros motivos em compradores da sua arte, do seu romance. O subtexto é: use formas menores de expressão, com as quais as pessoas interagem sem necessidade de promoção (ok, com menor necessidade de promoção), para ganhar o seu passaporte para as formas maiores de expressão, que as pessoas estão menos interessadas em consumir, mas que são evidentemente mais valiosas.
Imagine em 100 anos, um historiador cultural olhar para trás e nos enxergar, com o mundo digital literalmente nas mãos quase que literalmente o tempo todo, nos perguntando: como fazer para que as pessoas larguem essa besteira e vão fazer outra coisa? E se todo o nosso sistema de avaliação estiver errado? E se já estivermos construindo uma coisa nova com os materiais que ainda estamos inventando? Chuck Klosterman fala que a história das ideias é feita de reavaliações radicais. Em seu epitáfio, não ocorreu a Ésquilo mencionar que foi autor de tragédias, motivo pelo qual o recordamos hoje; ele pensa a sua longevidade como veterno de guerra, da batalha de Maratona. Nós, já alheios ao heroísmo guerreiro, canonizamos Ésquilo por suas peças teatrais, que ele mesmo não pensou em gravar em pedra. Fiquei imaginando um mundo no qual os podcasts do aspirante a romancista ainda são ouvidos. No canto da tela, a curiosidade: também escreveu romances, agora perdidos.
Don Quixote, Picasso (1955)
Ao lançar meu primeiro livro ano passado, entendi bem isso da comunidade. Quem leu meu ebook é quem já me lê escrevendo bobagens e não bobagens na www afora. Torço para a invenção de alguma outra coisa que nos tire das telas - talvez seja outro tipo de tela? - mas sei que não estamos no pior momento. Veja bem, por elas, cheguei até o seu texto.
:)