Essa newsletter sai aos domingos, mas eu estava de férias em São Paulo. Vamos fingir que é domingo.
Healer of the broken-hearted
Binder of their wounds
Counter of uncountable stars
You know who we are
Estou no aeroporto, no trajeto de volta para Nova York. Acabei de comer um sanduíche de 30 centímetros, uma fatia de chocotone que planejava guardar para o vôo e aproximadamente meio litro de Coca Zero. De modo que estou predisposta a afirmações grandiosas.
Há duas formas de encerrar uma história: você mata o personagem ou cura a sua ferida. O jeito mais antigo de consertar o que está quebrado é voltar para casa.
Gilgamesh retorna para o seu reino. Ulisses volta para Ítaca. Os hebreus chegam à Terra Prometida. Voltar para casa é fundir quem fomos com quem nos tornamos, é juntar os fragmentos do presente e do passado. É retornar da aventura e estar em paz. É ser de novo um.
Em “O mal-estar na civilização”, Freud fala que a nossa vida psíquica conserva as camadas primitivas junto à matéria transformada que delas nasceu. Se nossa psique fosse uma cidade, seria uma Roma na qual existem simultaneamente o Coliseu e a desaparecida Domus Aurea, de Nero; Marcus Agrippa e Benito Mussolini, César de toga e os dândis de Dolce & Gabbana. Ou mais ou menos assim.
Junto com a nossa última fase de desenvolvimento, todas as anteriores continuam a viver. Nós mudamos, mas em algum nível subterrâneo ainda conservamos nossas versões passadas. As nascentes se tornam rios que desembocam no mar, mas adentrando o suficiente ainda há a água doce, e seguindo até o fim ainda há um único fio d’água. Quando nos sentimos um com o mundo, segundo Freud, estamos revivendo o sentimento oceânico de não saber diferenciar o eu do outro, o bebê da mãe, e estarmos em uma casa primordial.
Passei os últimos doze dias em São Paulo, na cidade que chamo de casa. Hospedei-me em um Airbnb não só no prédio em que mora a minha mãe, mas também no mesmo formato de apartamento, apenas cinco andares acima. Quando levantei de madrugada para tomar água, não deixei nenhuma luz acesa atrás de mim para iluminar o caminho. Eu sabia como voltar. Deitei minha cabeça no travesseiro e me toquei - era como se nunca tivesse ido embora. Talvez tenha chorado um pouquinho.
Foi a primeira vez que meu marido visitou o Brasil, então desenterramos as fotos antigas. Há um álbum de uma viagem escolar para Ouro Preto cujo conteúdo é quase exclusivamente de igrejas em mal enquadramento. Eu me sentia tão feia que há apenas duas fotos minhas. Hoje, dezessete anos depois, eu consigo olhar para o passado - para a versão passada de mim - com misericórdia. Eu era bonita.
Voltar para casa é fazer as pazes com quem fomos um dia. Quando o presente e o passado colapsam no espaço-tempo, quando se juntam os incontáveis pedaços, nós sabemos quem somos.
que texto lindo, como sempre <3
Caramba, me tocou bastante <3