Como premissa para esse texto, digamos que, num cenário totalmente hipotético e ficcional, eu tenha protagonizado um episódio que me fez pensar sobre as representações culturais da raiva. Se nesse cenário imaginário eu tivesse arremessado um celular, batido umas portas e gritado a plenos pulmões, quais seriam alguns precedentes deste comportamento na ficção? Essa não seria uma pergunta de interesse meramente especulativo, um exercício mental; dado que na vida normal poucas pessoas saem por aí comentando sobre episódios de raiva que fazem telefones serem atirados longe, resta a ficção como companheira para certas realidades.
Há uma raiva pré-civilizatória: é a raiva que quer sangue. Esse é o sentimento que alimentava Clitemnestra, na origem da civilização ocidental. De acordo com a mitologia grega, Clitemnestra era esposa de Agamêmnon, general da Guerra de Tróia. Um episódio de sua história é contada por Ésquilo na primeira parte da Orestéia, uma tragédia em três partes. Dez anos antes do início da peça, Agamêmnon havia sacrificado a filha, favorita de sua esposa, para tentar aplacar os deuses e ganhar a guerra. Quando a peça se inicia, Clitemnestra teve uma década para marinar o ódio e, assim que o seu marido retorna vitorioso da batalha, de uma guerra longa da qual ele traz espólios valiosos, ela o assassina no mesmo dia.
A história de Clitemnestra faz parte de um ciclo maior de ódio e violência conhecido como a maldição da casa de Atreu. Os Atridas são uma família poderosa e sanguinária, na qual cada geração comete atrocidades que os demais terão que vingar, num ritmo cíclico de guerra e paz que devora a todos. O pai de Agamêmnon serve ao irmão uma sopa feita dos corpos de três dos seus filhos, e resta ao filho remanescente, Egisto, aguardar o momento da vingança. Agamêmnon assassina a própria filha para fazer uma oferenda aos deuses e começar a guerra de Tróia. Clitemnestra mata Agamêmnon, vingando a filha do casal, com o apoio de Egisto, seu amante. Na sequência da Orestéia, cabe ao filho de Agamêmnon e Clitemnestra retornar à sua terra natal para matar a mãe e Egisto, que assumiram o trono.
Para os gregos, a raiva é abertamente um dos motores da ação humana. O ódio se libera em explosões e consome totalmente o que está à sua volta. Ele então desaparece no indivíduo, que se aliviou completamente da ira, e se transfere para o próximo elo do ciclo de vingança. (Talvez uma das únicas vantagens da ignorância seja que podemos nos surpreender com o que tanta gente já sabe há séculos ou, nesse caso, milênios. Ano passado, li a Ilíada meio sem saber do que se tratava. Para a minha surpresa, a Ilíada é a história de como a ira de Aquiles se inflama e depois se apazigua, num processo que tem um imenso custo pessoal e social.)
Ésquilo viveu 500 anos antes de Cristo (ou da Era Comum) e usou em suas tragédias materiais ainda mais antigos, que eram as histórias mitológicas que já circulavam oralmente desde a Idade do Bronze. Pulemos agora para o Japão do século XXI, uma sociedade que se entende como uma das mais civilizadas e tecnologicamente avançadas da História. Assim como as tragédias gregas foram em sua época o equivalente a cultura de massas (as peças não eram lidas em vetustas bibliotecas pelos membros mais estudados da sociedade, mas encenadas em arenas gigantescas para milhares de pessoas, como parte de festivais religiosos), há um fenômeno cultural japonês que mobiliza apaixonadamente milhões de pessoas: os animes, desenhos animados que miram o público adulto. Caso eu tivesse passado por um hipotético episódio de raiva que serviria de premissa a esse texto, um anime do qual eu poderia me lembrar seria Aggretsuko - que está no Netflix e também vem a ser uma das poucas animações japonesas que conheço.
Aggretsuko é uma criação da Sanrio, cujo personagem mais conhecido é Hello Kitty. Retsuko, protagonista da série, é uma Hello Kitty com raiva. Ela é uma panda vermelha fofinha que fez tudo certo - ela se formou, arranjou um bom emprego na área de contabilidade e trabalha diligentemente - mas a sua vida é medíocre. Ela trabalha para pagar as contas de um apartamento pequeno em Tóquio, em um emprego do qual ela não gosta, com um chefe machista. Para piorar, ela tem 25 anos, idade na qual é esperado que ela tenha um relacionamento sério e se case, numa sociedade em que o seu valor como mulher é atrelado ao seu sucesso romântico. Como válvula de escape, a fofa Retsuko tem uma personalidade noturna: sozinha em salas de karaokê, ela se transforma em Aggretsuko (aggressive Retsuko), e canta as suas frustrações no heavy metal.
Há algo de catártico na raiva de Retsuko, que, em segredo, explode com as pequenas indignidades do metrô cheio ou com as grandes indignidades sociais (na terceira temporada, falando de dívida estudantil, o Netflix legenda uma de suas letras de música como “screw you capitalism” - numa tradução não literal e inadvertidamente irônica para uma empresa com $237 bilhões de valor de mercado). Há, também, algo de incompleto, insatisfatório, nessa raiva. O ódio de Retsuko aparece sublimado, um termo freudiano para nomear pulsões que são domadas, canalizadas para fins que não o do instinto inicial e, assim, tornadas socialmente aceitáveis. A sublimação é uma das nossas conquistas civilizacionais. É como se, em vez de matar Agamêmnon com as próprias mãos, Clitemnestra fosse para uma aula de kickboxing.
O custo da sublimação, porém, é que a raiva de Retsuko nunca se esgota. O funcionamento das válvulas de escape consiste em só liberar a pressão excedente; a raiva basal, corriqueira, não desaparece. De fato, ela está sempre pronta para ressurgir numa nova explosão de heavy metal. Já Clitemnestra, no mito da Idade do Bronze, ao menos tem um período de paz interior depois de levar a sua raiva às últimas consequências e antes de morrer pelas mãos do filho.
É esse o dilema com o qual, hipoteticamente, ficcionalmente, me deparei. Por um lado, só a combustão limpa o terreno; a alternativa é o ressentimento se instalar como uma ameaça constante. Por outro lado, a raiva sem freios cobra um preço caro, e ela é consumida ao custo de destruir tudo ao seu redor. Há, porém, um tipo de explosão construtiva. Eu nasci no cerrado, numa zona agrícola de soja. Não tenho muitas memórias em primeira pessoa, mas lembro da minha mãe contar que os agricultores botavam fogo nas próprias plantações não para destruí-las, mas justamente para que voltassem à vida. Como a moita que arde sem ser consumida pelas chamas, há a ideia do fogo controlado que prepara para o plantio. Existem algumas emoções que a gente tem que viver para deixar passar; algumas horas em que é necessário queimar para voltar a cultivar.
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Recomendações:
Sobre os gregos e tudo mais: All Episodes (literatureandhistory.com)
Sobre Aggretsuko: How Sanrio Makes Anti-Capitalism Adorable, and Profitable - The New York Times (nytimes.com)
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