O que é viver no presente?
Eu passei março e abril de 2020 trabalhando do meu apartamento no terceiro andar, de frente para uma rua em que não passava mais ninguém. As sirenes das ambulâncias cortavam o silêncio, depois se calavam à distância. Nova York era o epicentro global da pandemia. Mais de 15 mil pessoas morreram de COVID-19, apenas na cidade, apenas naqueles dois meses. Para efeito de comparação, o Brasil todo acumulava 6 mil mortes ao fim de abril. A cada sirene que passava, era como se segurássemos o fôlego em conjunto. Em seguida, baixávamos a cabeça e fazíamos o que era preciso para passar o dia.
Em 26 de maio de 2020, George Floyd foi assassinado por dois policiais em Minnesota. Dois dias depois, começaram os protestos na cidade de Nova York. Havia no ar uma mistura de medo e raiva. Do meu apartamento na divisa com o Harlem, tradicional bairro negro, um helicóptero da polícia me acordou na madrugada. Lojas de luxo foram pilhadas no SoHo. Em resposta, a prefeitura decretou toque de recolher a partir das oito da noite. Àquela altura, quem podia havia deixado a cidade por conta da pandemia. Entre quem ficava, havia algo de duplamente ferido.
Sábado, 7 de novembro de 2020. O resultado das eleições presidenciais se arrastava por dias. Era uma manhã clara de outono, eu e o Michael haviamos saído para comprar um suco na deli da esquina. Por trás do som da centrífuga, a TV anunciou a derrota de Donald Trump. O dono da deli nos entregou os dois copos e nos acompanhou até a rua, onde já se ouviam as buzinas de comemoração. O Harlem estourou de uma alegria represada, o grito de gol na prorrogação. No percurso entre as ruas 110 e a 125, fizemos parte da festa se formando na calçada, acompanhada pela celebração nas janelas e nas varandas. Retornando para casa, bêbados de felizes, uma felicidade de Copa do Mundo, vimos uma praça tomada pelas pessoas. Na época, nossos vizinhos da frente eram um casal que já parecia cansado e à beira do fim. Eles estavam na praça, entre a multidão, de mãos dadas.
Estamos todos à procura de conexão. Apesar do que nos separa, somos unidos por estarmos vivos agora, ao mesmo tempo. Como no teatro, quando a peça atinge um momento dramático, estamos todos respirando em uníssono. Em muitos anos, quando a memória desses dias específicos for apagada, quando o tecido de nossas vidas for uma questão de História, estaremos juntos nessa massa de eventos da década de 20. Teremos vivido as suas questões. Teremos compartilhado as suas cegueiras. Teremos seguido adiante, um dia após o outro, sem saber se estávamos às vésperas de algo grande - rebentação - ou se nadávamos na oscilação normal das ondas.
Na sexta-feira, 24 de junho de 2022, caiu o precedente de Roe v Wade, que garantia a autonomia corporal feminina antes da viabilidade fetal. Também foi a comemoração do meu aniversário de casamento. É verão, um sol maníaco reflete-se nos prédios e no asfalto. O que está no ar? O que se revela entre os olhares? Domingo é a Parada do Orgulho Gay e a cidade está colorida de bandeiras e de pessoas. Estamos juntos nessa - o melhor e o pior de nós se revela no encontro. No presente pulsa alguma coisa - o quê? As mãos dos vizinhos: ainda estão juntas?
Sob a Onda de Kanagawa (1831)
Que forte (!!!!) <3
uau que texto forte!!!