Na semana passada eu voltei para casa. Retornando depois de quase 2 anos, ainda não sou imigrante no país onde moro e já sou um pouco estrangeira no país de onde vim. A São Paulo íntima continua como eu a deixei - a casa da minha mãe e o círculo dos meus amigos, tão familiares que é se como uma parte de mim ainda vivesse a vida antiga, e eu fosse topar comigo mesma na versão anterior, na versão que nunca foi embora, virando uma esquina.
A São Paulo externa, porém, vai mudando aos poucos: já sinto nosso descolamento. Não sou mais totalmente fluente na língua que se fala nas ruas, nas lojas e nas portarias, e me sinto estranhamente artificial. O meu trajeto antigo ganhou alguns acréscimos novos, construções que não vi subir e lojas que não testemunhei colocarem a placa, como bebês que não acompanhei nascer e já encontro andando. Nesse espaço que se abriu entre mim e a cidade, lembrei de Marc Chagall, o pintor das pessoas em suspensão.
Marc Chagall foi o último dos modernistas. Nascido no Império Russo em 1887, Chagall viveu até 1985, quando Matisse, Picasso e Miró já estavam todos mortos. Com suas cores vibrantes, formas arredondadas e atmosferas oníricas, Chagall empregou as técnicas modernistas para invocar continuamente a Vitebsk de sua infância e juventude. As figuras que o pintor retrata raramente se sustentam em solo firme: elas flutuam, desoladas ou alegres; elas levitam, como se seus tapetes tivessem sido puxados, mas houvesse esperança na aterrissagem. Essas figuras não tem raízes no mundo exterior, mas em sua rede íntima de relacionamentos e símbolos. Elas pertencem a algum lugar dentro de si mesmas.
Carmen, 1966
E qual é esse lugar, a que se pertence tão intimamente, e ao mesmo tempo se é estrangeiro? O que foi a Vitebsk, entre tantas outras cidades, que na época de Chagall já se transformava, e hoje existe no vácuo de um mundo que desapareceu? Vitebsk era parte da porção do Império Russo conhecido como Pale of Settlement, ou Zona de Assentamento Judaico. No final do século XVIII, em seu ímpeto expansionista, o Império Russo inadvertidamente se viu anexando a seu território a maior população judaica da Europa. Especialmente após as 3 partições da Polônia que aconteceram entre 1772 e 1795, 600 mil judeus passaram a integrar a Rússia. Temendo que os judeus imigrassem para o interior do império e alterassem o modo de vida do camponês russo, Catarina, a Grande editou um decreto em 1791 que proibia que judeus saíssem das províncias polonesas. Em 1835, foi formalizada a existência jurídica do Pale of Settlement, área em que os judeus foram confinados, em que sofreram e que amaram, até a Revolução Russa (1917). A ambivalência em relação à terra em que se vive simultaneamente como nativo e estrangeiro marca o ato final do filme Um Violinista no Telhado (1971), a representação mais popular da cultura iídiche:
Mapa do Pale of Settlement ou Zona de Assentamento Judaico
Há uma universalidade na obra de Chagall que lhe permitiu aclamação mundial, que lhe pendurou painéis no Lincoln Center em Nova York e decorou o teto da Ópera Garnier em Paris. Quem olha para Aniversário (1915) pode não saber nada sobre o shtetl, a cultura iídiche, o misticismo hassídico - há, ainda assim, algo nas grandes obras que se comunica através do tempo e das barreiras culturais. No livro 6 de Minha Luta, Karl Ove Knausgaard interrompe longamente a narrativa do seu romance para falar sobre arte, sobre as pessoas, sobre porque as histórias tem que ser contadas. Empresto aqui o que ele falou a respeito de Jorge Luis Borges, Leonardo da Vinci e Kazimir Malevich, tirando-lhe do contexto mas preservando a ideia original, em tradução livre:
“Arte é o que não pode ser feito de novo, lembra Borges, e assim se assemelha ao milagre. Que outra pessoa, por coincidência, tenha pintado a Dama com Arminho exatamente como Leonardo fez, é um pensamento impossível, ao passo que alguém desenhando a mesma imagem do coração ou do peito ou do braço com seus tendões e vasos sanguíneos expostos não é. A pintura tem um tempo e um lugar, é uma situação encapsulada, com todas as suas propriedades e detalhes, enquanto os desenhos do corpo são atemporais e sem espaço definido. O que importa na pintura é a mulher particular, o animal particular, o único e local, enquanto nos desenhos tudo são corpos, o geral e o universal.
A arte é única e local, buscando sempre o único e local, resistindo a tudo que busca desviá-la dessa trajetória. Todo o seu valor reside nisso. Mesmo uma pintura de alguém como Malevich, cujas figuras geométricas simples de superfícies totalmente monocromáticas aparentemente visam a generalidade total, é única e local, pois em vez de ser a expressão dessas figuras em si mesmas, a pintura é a representação que Malevich fez delas, e esta presença de outro ser humano fixa a pintura no tempo: não poderia ter sido pintada por mais ninguém.”
Aniversário (1915)
Como todos somos únicos e locais, a forma como entramos em contato com a humanidade dos outros, com alguma sensação de universalidade, passa pela expressão do único e do local. Em Aniversário, ao mesmo tempo importa muito e muito pouco saber que esse é um retrato de Marc e Bella Chagall a ponto de atravessar a janela e voar por Vitebsk. Se de alguma forma não nos conectamos emocionalmente com a imagem, com o amor das duas figuras fantasmagóricas, com esse voo que é leve e sombrio, a plaquinha explicativa num museu vai nos ajudar apenas superficialmente. Mas se algo nos chama em Aniversário, a mesma explicação abre um canal para outra pessoa: Marc Chagall viveu e você vive; até agora você não sabia o que era Vitebsk e teve que abrir uma aba no Google para descobrir que é uma cidade industrial na Bielorussia, mas se esse quadro é produto da experiência de Vitebsk, da experiência de ser Marc e Bella Chagall na Zona de Assentamento Judaico, e algo nele fala diretamente a você - de alguma forma a Zona de Assentamento Judaico vive e você a entende.
Em pouco mais de 100 anos de Zona de Assentamento de Judaico, a população se multiplicou em quase 10 vezes. De acordo com o censo de 1897, havia mais de 5 milhões de judeus nas 26 localidades em que lhes era permitido viver. Nesses guetos urbanos, os judeus viviam como maioria e formavam uma sociedade completa: no topo da pirâmide, uma burguesia financeira, proprietária das fábricas e oficinas locais; na camada intermediária, comerciantes e intelectuais; abaixo, a massa de trabalhadores judeus. Na virada do século XX, estima-se que um terço da população economicamente ativa dedicava-se ao comércio e outro terço era composta por artesãos: alfaiates, sapateiros, tecelões, carpinteiros, ferreiros, etc. A língua comum era o iídiche, um dialeto germânico expresso em alfabeto hebraico. Mesmo para nós, acostumados a pensar na vida contemporânea como bastante acelerada, é difícil imaginar a velocidade com que o solo se movia debaixo dos pés dessas pessoas. Polônia, Lituânia, Romênia, Ucrânia e Rússia faziam um jogo de empurra com as fronteiras nacionais, e as cidades da iídichelândia mudavam de mãos como joguetes, descartadas como peões de tabuleiro. A partir de 1880, a industrialização se acelerou no Leste Europeu, esgarçando o tecido social das comunidades tradicionais. Os artesãos viravam trabalhadores nas fábricas de cigarros e fósforos da Bielorrussia. A pobreza e a marginalização eram campos férteis para radicalização política, e em 1897 surgiu o Bund, principal organização socialista judaica, com 30 mil membros em 1905. Os pogroms, massacres realizados pela população russa, se intensificaram: em 1903, 49 judeus foram mortos em Kishinev, na província russa da Bessarábia. Em um intervalo de pouco mais de 10 anos, a Rússia passou por duas revoluções e uma guerra civil. Na Rússia socialista, o “problema judaico” se colocou novamente: o que fazer com essa população com traços de nacionalidade, numa revolução de caráter universalista?
Acima da cidade, 1918
É nesse contexto que as figuras de Chagall estão suspensas no ar. Elas não têm raízes no mundo externo, mas comumente se agarram umas às outras. Elas sobrevoam a cidade, olhando-a de fora, como estrangeiros. O voo é por vezes melancólico, por vezes alegre: há sofrimento, mas também há promessa no estado de suspensão. Os amantes aparecem sozinhos ou rodeados por imagens da simbologia judaica; a cidade da qual se descolam é a Vitebsk de origem ou a Paris do exílio, mas os pés que não tocam o chão, como raízes que não encontram o solo, são as constantes desse estado de pertencimento precário.
Romeu e Julieta, 1964, detalhe do teto da Ópera Garnier em Paris
Na semana passada, na semana em que voltei ao Brasil e lembrei de Chagall, 28 pessoas foram assassinadas na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Há muitas aproximações entre os guetos urbanos da Zona de Assentamento Judaico e as favelas brasileiras. Ambos têm a marca de um pertencimento precário: um lugar de onde se vem mas que não oferece proteção; um enclave frágil dentro de uma estrutura de Estado hostil, que trata seus moradores como estrangeiros, como um outro sem direitos. Locais em que a vida se equilibra em telhados trêmulos e o chão está sempre a um segundo de faltar.
O violinista azul, 1947
Referências
Revolutionary Yiddishland, a History of Jewish Radicalism, por Alain Brossat e Sylvia Klingberg (Verso, 2017)
My Struggle, Book 6, por Karl Ove Knausgaard (Farrar, Straus and Giroux, 2019) - páginas 721 e 722
Origins of the Pale of Settlement:Module 2, Lesson 3: Origins of the Pale of Settlement - YouTube
Pale of Settlement: The Pale of Settlement (jewishvirtuallibrary.org)