Casos de família (3/54)
Esse é o terceiro texto da minha série anual sobre a Torá. Quando chegamos na parashá Lech Lechá ("Vá em frente!”, 12:1 a 17:27), o Gênesis já nos preparou para gradualmente sairmos do domínio da lenda e adentrarmos as dimensões da existência humana. As genealogias, que servem como um mecanismo de transição entre os episódios, comunicam-nos a mudança de escala. Na primeira genealogia, entre Adão e Noé, as pessoas vivem míticos 900 anos. Entre Noé e Abraão, a vida média sai dos 250 até chegar aos 100 anos. A história de Abraão e Sara marca uma mudança de registro narrativo: do folclórico e simbólico ao humano e familiar.
Há poucas páginas tão influentes na História quanto as que separam os capítulos 12 e 18 do Gênesis. No começo da parashá, Abraão ouve uma voz que o exorta a abandonar sua terra, seu local de nascimento e a casa de seus pais para caminhar em direção ao desconhecido. Esse passo é o marco espiritual das três grandes religiões abraâmicas: judaísmo, cristianismo e islamismo. No fim dessa porção semanal, firma-se a aliança entre a tribo de Abraão e Deus. A ideia de que há algo crucial que vale a pena proteger foi o alento para que o povo judeu insistisse em existir por mais de três mil anos - o único povo da Antiguidade que ainda sobrevive. No entanto, o material que compõe a substância da parashá é radicalmente mundano.
A primeira oportunidade na qual ouvimos as palavras de Abraão é em um ato de covardia. O primeiro patriarca, o pai do povo, fala: "Veja, eu sei que você é uma mulher muito bela, então quando os egípcios a virem e disserem: 'É sua mulher', eles vão me matar enquanto a você deixarão viver. Diga, por favor, que você é minha irmã, para que me tratem bem por sua causa e me conservem a vida”. E assim Abraão entrega Sara como esposa para o faraó, em troca da própria segurança. A primeira vez que ouvimos a voz de Sara é no momento em que ela oferece uma escrava como concubina ao marido. A primeira matriarca, a mãe do povo, fala: “Deus me impediu de ter filhos. Eu te peço, vá para a cama com a minha escrava. Talvez, por ela, eu tenha filhos”. E assim Hagar engravida de Abraão, e Sara passa a odiá-la. Os grandes nomes da Torá não são heróis e heroínas. A aliança de Deus é estabelecida com um povo nômade, de uma família problemática, entre pessoas falhas. Essa é a grandeza narrativa do Gênesis.
O estilo bíblico é elíptico. Os escritores judeus eram econômicos nas palavras e criaram um texto que sugere, mas não explica; um texto cujas lacunas convidam à interpretação. No livro Mimesis, o crítico literário Erich Auerbach compara a Bíblia Hebraica aos poemas homéricos. De acordo com ele, é impossível interpretar a Ilíada ou a Odisséia. Esses épicos podem ser analisados, mas não propriamente interpretados: eles são diretos, cristalinos, sem mistérios a serem decifrados. A Bíblia Hebraica, por sua vez, é um texto que simultaneamente se revela e se esconde. As lacunas da Torá demandam explicação, e é essa necessidade de engajamento do leitor que mantém o texto vivo.
A ausência mais notável na história de Abraão e Sara é: por que Abraão? por que Sara? A Torá é silenciosa a respeito dos motivos da eleição do povo. Abraão e Sara aparecem casualmente na terceira genealogia do Gênesis, após a queda de Babel. Nada indica que na linha seguinte Abraão vai ouvir a voz de Deus e mudar o rumo de sua família. Porém é assim que acontece. Podemos virar o texto de cabeça para baixo e ele não fornece o motivo para Deus ter escolhido Abraão. De fato, a ideia de um povo escolhido é estrangeira ao Gênesis - ela simplesmente não está lá.
A viagem de Abraão a Canaã. József Molnár, Wikimedia
As únicas menções ao povo ter sido escolhido por Deus ocorrem em Deuteronômio, o quinto e último livro da Torá. O Deuteronômio é também o livro mais recente, cuja redação deve mais ao período de exílio na Babilônia. O contexto da escrita muda a conotação da expressão “povo escolhido” - não um auto-elogio de um povo que se sente superior, mas uma tábua de salvação para um grupo recém massacrado. A mishná, a tradição oral judaica, na verdade relata que o povo judeu não foi o primeiro a ser procurado por Deus. Representantes de outras tribos e outras nações foram a primeira opção. O mérito de Abraão não foi ter sido o escolhido; Abraão se faz digno ao ouvir o chamado de Deus e escolher segui-lo.
Auerbach nota que o caráter de Abraão é mais multifacetado do que uma leitura superficial revela. De acordo com ele, Abraão divide-se entre a rebelião desesperada e a expectativa esperançosa. Abraão abandona sua casa por conta de duas promessas de Deus: uma terra que ainda será revelada (“Sai da sua casa (...) para a terra que lhe mostrarei”) e descendência numerosa (“Eu farei de você um grande povo”). Por quase toda a sua vida, ambas as promessas soam como chacotas: a terra de Canaã já é ocupada por outros povos, mais ricos e mais belicosos; Sara é infértil e Abraão chega aos 90 anos sem herdeiros. Abraão aposta todas as suas fichas no pacto divino, e até a idade avançada uma parte dele cogita a derrota. No capítulo 15, ele confronta Deus: "não tenho descendência e um dos servos de minha casa será meu herdeiro (...) como saberei que vou herdar a terra?”. A obediência de Abraão carrega também suas vacilações internas, a possibilidade de ter levado a sua família para um beco sem saída.
A elevação do pacto divino convive lado a lado com a realidade da vida cotidiana. O mesmo homem que sela uma aliança com Deus ora covardemente entrega a esposa para salvar a própria pele, ora a obedece a qualquer custo para não ter problemas matrimoniais; ora negocia a divisão de rebanhos com o irmão Lot, ora o salva magnanimamente de uma enrascada. Sara, entregue nas mãos do faraó, quando tem a oportunidade também faz algo semelhante com outra mulher, e induz sua escrava a deitar com o marido para benefício próprio. Os conflitos de família, a falibilidade e grandeza das pessoas, são material bíblico inseparável da substância divina.
A Torá está mostrando para o povo: essas pessoas não são seus ídolos, elas são seus pais. Após uma sucessão de maldições - a expulsão do Éden, o exílio de Caim, o dilúvio, a destruição de Babel - a primeira bênção é dada a Abraão e Sara. Eles não são escolhidos por serem excepcionais e não são elevados ao posto de heróis. Abraão é um pai e Sara é uma mãe.
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Referências
Violência contra as mulheres: saindo da inércia. Rabino Rogério Cukierman, Congregação Israelita Paulista (CIP)
“Ao longo dos séculos, a tradição judaica foi desenvolvendo desculpas e explicações para cada um dos erros cometidos pelos patriarcas, de tal forma que eles deixaram de ter erros. Os patriarcas, na prática, passaram a ser vistos como perfeitos. Eh hora de sairmos dessa inércia e olharmos com honestidade para as falhas dos nossos patriarcas. Quem sabe seja esse o nosso momento de lech lechá, o momento da gente abandonar o conforto das nossas certezas, e permitir que as dúvidas floresçam, também na relação com a tradição."
Mimesis, por Erich Auerbach, em tradução livre:
“Os grandes acontecimentos dos poemas homéricos acontecem de maneira exclusiva e inequívoca entre os membros de uma classe dominante; e estes são muito mais intocados em sua elevação heróica do que as figuras do Antigo Testamento, cuja dignidade cai a níveis mais baixos; e, finalmente, o realismo doméstico, a representação da vida cotidiana, permanece em Homero no reino pacífico do idílico, enquanto, desde o início, nas histórias do Antigo Testamento, o sublime, o trágico e o problemático tomam forma precisamente no domínio do doméstico e do comum.”