Você pode ler a parte I aqui - ou não. Os textos são relacionados, mas independentes.
I. Estúdio de gravação, Bushwick.
Não são nem 7 horas da manhã e tenho um demônio de papel machê no colo. Nas estações vazias, as portas abrem e fecham sem que nenhum passageiro se junte a nós no trajeto até o Brooklyn. Moloch, o devorador de crianças, repousava na minha estante como peça decorativa desde a última filmagem. Hoje ele voltará à vida.
O estúdio é uma portinha entre uma lixeira e o supermercado. Uma escada íngreme leva ao primeiro andar. Abraço Moloch e vamos subindo; quem observasse de cima veria primeiro a minha cabeça sonolenta e depois os chifres, os olhos, a carranca. Mas não há ninguém. Somos os primeiros a chegar e o trajeto de metrô, o dia cinza, a recepção esquálida - tudo se desfaz à visão alienígena da tela verde. Um verde de parede a parede, sobre o qual o mundo desaparece e é recriado em novas bases.
É a minha primeira filmagem, e devo confessar que consegui o cargo pelas vias do nepotismo. Em minha defesa, não esperava ter cargo. Na rodada de apresentações, o elo de casamento soou inadequado e o diretor me introduziu como co-produtora executiva, uma promoção instantânea. Ainda em minha defesa, em curta-metragens independentes, o título não significa grandes coisas.
Logo descobri minhas atribuições. Empoleirada no banquinho da recepção, tive as honras de porteira. O interfone tocava e eu fazia subir uma nova cabeça sonolenta com o seu companheiro - uma câmera, um kit de áudio, um estojo de maquiagem. Administrei a estação de café da manhã e, questão de honra, saí correndo para o supermercado à primeira reclamação de falta de cream cheese. Molhei o figurino que deveria passar e fiquei uns dez minutos corrigindo a burrada na base do secador de cabelo. Enfim, fui feliz.
A alegria pura do Gênesis: você cria o mundo, o nomeia e ele existe. Ele é bom. Deixo o meu posto da recepção, entro no estúdio e fecho a porta atrás de mim. O ar cheira a respiração e spray de cabelo. Acho um canto perto da moça dos efeitos especiais, que está rindo e dedando o celular. As atrizes estão passando o texto, que eu li tantas vezes no sofá de casa, li tanto que confundi as versões, não vi mais diferença, acenei e disse que, sim, sim, estava ótimo. Há um segundo de silêncio depois da claquete, um segundo que merece todas as glórias do clichê sincero - silêncio, que o verbo ganha vida.
Nós contamos as histórias e elas se tornam realidade. Contamos de Deus e inventamos um amor infinito. Contamos da falta de sentido e inventamos o desespero. Contamos de cidades em que as portinhas entre o lixo e o mercado dão para estúdios e inventamos Bushwick, Brooklyn, New York.
II. Táxi em movimento, São Paulo.
Devia estar olhando pela janela - vivendo o momento! habitando o presente! - mas estou muito cansada para ter princípios. O voo para casa foi longo. Além do mais, não sou budista - sou judia e meio neurótica. Puxo o celular da bolsa. A Marginal Tietê vai passar com ou sem os meus olhares lânguidos.
Encontro na minha caixa de entrada um texto que se chama .rio mas é sobre São Paulo - “sempre sem projeto, sem ambição, sem intenção, sem sonho nem futuro”. Entendo o sentimento. Quando fui embora de São Paulo, parecia que eu tinha diante de mim um presente infinito. Um mundo mapeado, um circuito fechado, sem aberturas, sem surpresas. Eu estava esperando o quê? Alguém que me abrisse a porta, ao pé de uma parede sem porta. Em teoria, eu poderia fazer algo - mas o quê? Eu me contava histórias viciadas sobre a vida e as minhas possibilidades.
Fiquei com algumas frases do texto na cabeça. São trechos de Schrödinger, que simultaneamente estão e não estão lá, na intersecção entre as palavras que eu li e o que elas leram em mim. É mais ou menos assim: São Paulo é uma cidade que precisa ser recriada na nossa imaginação. Uma identidade coletiva é um projeto criativo - e a frase vai assim mesmo, com aliteração. As comunidades imaginadas precisam renovar as suas histórias, recriá-las, reafirmá-las, porque elas são sobretudo um projeto de ficção. (A Luciana Andrade na verdade falou “thanks lina bo bardi por tudo, mas lá se vai mais de meio século”, porém não nos apeguemos a detalhes.)
Penso nas minhas próprias falhas de imaginação. Por que o mundo me parecia tão pequeno? Por que o traçado dos dias me parecia tão inevitável - um dia atrás do outro e todos essencialmente iguais? Por que eu me repeti, por que eu perdi tempo? Talvez porque eu tenha me tornado paulistana, com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, a arquitetura que se replica como se não houvesse alternativa, os prédios modernistas decaídos de um jeito que é descuido e não história.
A maioria dos romances que se passam em São Paulo me causam exasperação. Eu não preciso de um escritor para evocar o aroma de urina da calçada ou a pequenez das classes abastadas; ambas já sofremos de excesso de realismo, a cidade e eu, a São Paulo em mim. Eu quero a São Paulo do Antônio Xerxenesky em “As perguntas”, com suas seitas estranhas e segredos noturnos. Quero a Giovana Madalosso de “Tudo pode ser roubado”, com sua garçonete que surrupia uma primeira edição d’“O Guarani”. Quero qualquer coisa de mentiroso e inventivo, que recrie o mistério por trás das pedras e dos seres, que conte nossa história de um jeito diferente - a minha e a de São Paulo, a da cidade em mim.
Não levanto os olhos. Não devo nada à Marginal Tietê.
III. Soho House, Nova York.
- As pessoas tentam me consolar. Elas dizem que ele está num “lugar melhor”. Bitch, no. O Jonathan era gay, vivia em Nova York e namorava um homem da metade da idade dele. - Sam aponta para o próprio peito, coberto apenas por um colete de alfaiataria. - Não há um “lugar melhor”.
Sam tinha saído do meu radar em algum momento de 2019. Mesmo antes da pandemia, já fazia algum tempo que tínhamos parado de frequentar a cena de stand-up comedy. Em outubro de 2020, quando o Michael viu o anúncio de falecimento do Facebook - “Caramba, o namorado do Sam morreu de COVID” - eu precisei ver a foto para me recordar. Sim, eu lembrava do Sam. Eu e o Greenwich Village sabíamos até demais sobre o Sam, um cara bonito de vinte e tantos anos que fazia piadas sobre a própria vida sexual. Ele tinha um comando do palco que fazia a gente acreditar em talento inato. Quantas vezes eu tinha ouvido ele contar que era um twink em busca de um bear? Bom, aparentemente ele tinha encontrado e depois perdido. Aumentei a foto para ver melhor o falecido, um homem atarracado, de barba grisalha e sorriso fácil. Ele vestia uma camisa com estampa de abacaxi e lenço colorido no pescoço. O céu dos gays realmente vai ter que caprichar - aquele era um homem feliz.
Três anos depois, revisitei a lembrança de Jonathan na terceira fileira de um teatro off-Broadway. Era final de temporada, casa lotada. O show seguiria para Londres carregando uma resenha positiva no New York Times. As noites de stand-up em bares duvidosos eram coisa do passado: Sam era a estrela do próprio show de comédia, um especial sobre luto.
- Quando você está nas profundezas do sofrimento, nada ajuda. Nada que possam te falar ajuda. - Sam está sob um holofote, falando em voz constrita. - Exceto, é claro, “você acabou de ganhar um Tony” - Ele segura a estatueta imaginária do Oscar do teatro.
O show era bom, era realmente bom. Ri, chorei, tirei foto no final. Fiquei com aquilo na cabeça por dias: uma tentativa de comediante, alegre, sem história, em bares em que as mesas grudam e os banheiros fedem; depois, a casa lotada, o texto trabalhado, a felicidade e a perda de mãos entrelaçadas.
- Michael, você acha que dá para criar alguma coisa com base só na alegria?
- Uma história sem conflito? Tipo o paraíso?
- Sim, tipo o céu. O céu do Jonathan.
IV. Sofá da minha mãe, São Paulo.
Nas fronteiras da vida adulta, não existe ateísmo. Isso não é meu - é David Foster Wallace. A vantagem de adorar um dos deuses tradicionais é que qualquer outro deus vai te comer vivo e cuspir os ossos:
Se você venera o dinheiro e as coisas materiais, se é neles que encontra o verdadeiro sentido da vida, nunca terá o suficiente, nunca sentirá que tem o suficiente. É a verdade. Adore seu corpo, sua beleza e atração sexual e você sempre se sentirá feio. E quando o tempo e a idade começarem a aparecer, você morrerá um milhão de mortes antes que elas finalmente o enlutem. Em um nível, todos nós já sabemos essas coisas. Foi codificado como mitos, provérbios, clichês, epigramas, parábolas; o esqueleto de toda grande história. O truque todo é manter a verdade na consciência diária. Adore o poder e você acabará se sentindo fraco e assustado, e precisará de cada vez mais poder sobre os outros para entorpecer seu próprio medo. Cultue seu intelecto, ser visto como inteligente, e você acabará se sentindo um idiota, uma fraude, sempre prestes a ser descoberto. Mas o que há de insidioso nessas formas de adoração não é que sejam más ou pecaminosas, é que são inconscientes. São configurações padrão. Eles são o tipo de adoração em que você gradualmente desliza, dia após dia, ficando cada vez mais seletivo sobre o que vê e como avalia o valor, sem nunca estar totalmente ciente de que é isso que está fazendo.
Não há vida sem uma camada de ficção. Não há quem se levante da cama sem ao menos uma crença em si ou nas possibilidades do mundo. Não há vergonha na invenção, apenas na mentira - sobretudo a mentira de si, o auto-engano.
Os budistas falam que o ego é uma ilusão. Mas eu não sou budista, sou judia, e eu venero um livro de histórias. Somos feitos das nossas preciosas ilusões.
A Diletante é uma newsletter de ensaios. Na próxima edição, continuo o projeto bíblico com mais um texto sobre o Levítico.
Engraçado ler as notas sobre criação e o texto terminar falando de ego e livro de histórias... Semana passada eu estava tentando fazer uma definição do que era criação na sessão de análise e, embora não tenha chegado a lugar nenhum (me perdi nas incoerências), fiquei com sensação estapafúrdia de que criação é um negócio entre a boca do estômago e a mente. Depois fiquei pirando que se fosse pensar logicamente, criação deveria estar lá embaixo né... lá onde a gente se reproduz.
Tem uma dicotomia entre o criar mental e o biológico que me pega as vezes. Enfim.
(fui 100% a louca de palestra aqui no comentário, né?)
Acho que esse foi o meu preferido até agora, e olha que em geral eu adoro seus textos. O comodismo da internet me faz querer pedir links para os textos citados, mas vou tomar vergonha na cara e procurar eles pessoalmente. A parte sobre São Paulo e o imaginário coletivo da cidade que tem que ser sempre recriado me lembra "Ramadan", uma das histórias em Sandman, do Neil Gaiman, e o livro "The city we became" da N. K. Jemisin.