I. Fundos de um bar, Greenwich Village.
Cheiro de fritura, lavagem de dinheiro e limpeza só onde o padre passa. Sentei perto demais do palco e agora estou na linha de tiro para os comediantes fazendo piadinha com a público. Olho ao redor e suspeito que sou a única entre as dez pessoas lá que não vai se apresentar. Não sei, mas com o tempo desenvolvi faro para identificar os comediantes na plateia, esperando a sua vez ao microfone - um ar de ansiedade triste.
O leitor vai discordar, mas vou falar mesmo assim: um dos lugares mais tristes do mundo é um fundo de bar com show amador de stand up comedy. Sim, eu considerei os quartos de UTI, as criancinhas na guerra e os enterros em dia de sol, e decidi: não, são as noites de quarta-feira no fundo de bar. Há uma mistura de expectativa de alegria com sonhos secos e desespero que dá uma combinação especialmente miserável. Mas você não quer ficar pra baixo, se força a dar umas risadas, e é daí que a situação piora.
Me faço de absorta com a batata-frita; se não fizer contato visual com palco, quem sabe o comediante da vez me deixe em paz. Estou lá para apoiar o Michael e nunca desejei com mais fervor que ele tivesse se formado em contabilidade. Atrás de uma mesa de escritório, ninguém associa o seu valor pessoal a uma planilha. Num palco improvisado, o seu valor está nos olhos da plateia, seus sonhos e auto-imagem expostos à vista de todos. Mas ninguém olha, ocupados com seus próprios diálogos internos e ansiedade para a sua vez sob as luzes. Eu também não; mergulho uma batata na mostarda.
II. Escritório, Midtown.
Em fevereiro de 2020, quando mandaram a gente para casa, eu peguei uma mesa de centro, um puff para apoiar os pés, meu computador levemente maior que um tablet e montei escritório no quarto. O apartamento era pequeno e eu não tinha mesa de jantar; Michael e eu nunca compramos banquetas para a cozinha e nos acostumamos a comer no sofá. Um misto de negação da pandemia e os preços astronômicos de Nova York me fizeram trabalhar assim por um ano - nunca me ocorreu encaixar uma escrivaninha decente e uma cadeira ergonômica num apartamento de um quarto. É estranho: a gente tinha medo e solidão, mas não foi uma época triste. O quarto já veio com uma parede laranja e a luz da tarde entrava pela janela - a luz que eu sempre perdia, sob as lâmpadas brancas do escritório. Quando eu lembro desse tempo, é tudo quente e claro.
Naquela época, passei a ter um sentimento de dissociação. Já era estranho abrir conta bancária enquanto o mundo caía, mas ainda por cima os problemas pareciam existir só na realidade paralela do meu computador. Era só fechar a tela que tudo desaparecia, como um livro cuja ficção acaba e a gente segue a vida. Conheci colegas que entraram na empresa, saíram e não passou por mim nenhuma evidência de materialidade; não sei se eram altos ou baixos. Uma camada de insólito se instalou entre mim e o universo do computador. E se eu fechasse a tela e não abrisse nunca mais? Tinha a impressão que tudo era sonho, sem coisa real por dentro.
Hoje, eu ajusto a altura na cadeira ergonômica. Trabalhamos no escritório em dias alternados e alguém andou sentando no meu lugar. Examino a mesa em busca das evidências do culpado, mas encontro apenas meus objetos semi-pessoais: as canetas sem tampa, os cadernos de anotações, a garrafa de um litro d'água (aspiracional), a lata vazia de Coca-Cola (não-aspiracional), a vela cheirosa que obviamente nunca acendi (rótulo: Zen, a state of focus that incorporates togetherness of body and mind), a plaquinha de 10 anos de serviço e o prêmio de performing above and beyond, que eu recebi quando pensei que estava afundando. Cheguei um pouco atrasada e não dei bom-dia, para disfarçar; de qualquer forma, não é como se os americanos se preocupassem com meus cumprimentos. Há um movimento para a reunião da manhã, e eu capturo a caneta e o caderno que estão mais à mão para tomar qualquer nota. Na sala de conferências, a caneta não funciona. Pego o celular para as anotações; fecho o aplicativo em que comecei a rascunhar este texto e abro uma janela nova, outra camada de realidade.
Coleciono uma pequena lista de escritores com empregos de escritório. Não em sentido expandido, como tudo aquilo abaixo da lâmpada LED - editora, agência, redação; escritório no sentido de Bartleby - escritório-banco, escritório-firma, escritório-escritório. Os diplomatas e outros funcionários públicos não contam, com sua forma sutil de patronagem estatal; corto Machado, Guimarães, Drummond. Resta uma lista seleta e curiosa. E.T.A. Hoffmann, advogado e o maior expoente da literatura fantástica alemã; Kafka, funcionário-modelo da Companhia de Seguros de Acidentes de Trabalho em Praga, onde trabalhou por 14 anos; T. S. Eliot, que escreveu Waste Land enquanto trabalhava no departamento de transações internacionais do Lloyd’s Bank. Devem ter outros, mas estes três nomes brilhantes já são suficientes para iluminar qualquer caixinha de pedras; guardo a coleção com cuidado.
Há um senso de desperdício quando pensamos em Kafka atrás de uma pilha de formulários. Quanto mais ele poderia ter escrito, sem o cotidiano vivido entre as coisas ordinárias? Amaldiçoamos o público parco e a sociedade ingrata, o preço do aluguel e a falta de incentivo, o despertador que toca às 6:00 e o metrô que temos que pegar às 8:00, as horas mais criativas da manhã indo pelo ralo da pia do banheiro, entre os preparativos apressados. Não tenho certeza sobre Hoffmann e Eliot, mas Kafka deixou para trás a marca mais infalível do funcionário de escritório, o hábito da reclamação; reservo uma cadeira para Franz no horário de almoço, vamos falar mal juntos do serviço e do chefe. Mas - um Kafka tranquilo em seu retiro de escrita, seria Kafka? Não falo do contato perturbador com o mundo que é necessário para escrever A Metamorfose e O Processo - é sádico ver o lado positivo dos autores terem sofrido, pois ao menos assim puderam nos legar suas obras-primas - mas da âncora com a realidade que o escritor dos sonhos intranquilos precisava para não naufragar. O cartão de ponto de manhã e à tarde, a certeza da papelada a preencher, a obrigação que nos empurra a levantar e começar de novo; a caneta que encontra o caderno, a página impossivelmente em branco, a perplexidade de ter sempre que iniciar do zero. Não é tão triste assim, Kafka com sua marmita, o mundo de coisas reais por fora.
III. Igreja presbiteriana, Upper West Side.
Eu não sabia o que esperar, então já tinha forrado o estômago. Demorei um pouco, mas achei a entrada lateral da igreja - uns panfletos de shows e o anúncio de uma residência artística me deram coragem para empurrar a porta de madeira. O som ao fundo me guiou para uma capela secundária, fora de seu uso original, mas ainda com os bancos de igreja. O antigo púlpito havia dado lugar a um palco. Do meu lado direito, uma mesa de comes e bebes, cujas vendas ajudavam a custear o open mic; do lado esquerdo, um pequeno amontoado de pessoas inscrevendo seus nomes na lista.
Eu também não sabia ainda que Bob Brashear ia morrer, mas agora não consigo colocá-lo em outro lugar senão no palco, embora naquele momento fosse mais provável que estivesse parado na entrada, violão apoiado no chão. (Em vida, Bob não era especialmente fofo, mas o Michael e eu agora só nos referimos a ele como Bobby, e imaginamos que ele fará piada conosco se nos reencontrarmos atrás dos portões de São Pedro). Bob Brashear era o reverendo aposentado da igreja. Talvez o leitor não saiba - eu na época não sabia, mais um item para o quadro de ignorâncias - que um open mic é um evento no qual o microfone está à disposição de quem quiser se apresentar. As pessoas colocam seu nome na lista, esperam a sua vez, comem uns amendoins e aplaudem as outras performances de forma entusiasmada. Vale qualquer coisa e já vi de tudo: cantores e compositores, rap e hip hop, spoken word e beatboxing. Depois da aposentadoria, Bobby passou a compor músicas country, e a ideia do open mic veio junto.
Há poucos lugares mais felizes do que aquele open mic, da forma como ele está congelado na minha memória. Sim, eu considerei os casamentos ao ar livre, as proclamações de paz e as noites de premiação, mas escolhi o evento em que senhoras desconhecidas vem com seu grupo de amigas para declamar uns poemas. De peito aberto, se expor ao ridículo de estranhos, sem delírios de fama ou sucesso artístico; subir no palco e se mostrar como se está hoje, e praquela noite é o suficiente; todo o talento escondido sob as pedras, vivo nas sombras da vida comum, um reverendo, um garçonete, um engenheiro elétrico. Talentos que não vão para lugar nenhum, esquecidos que seremos todos, mesmo aqueles com filhos terão seus nomes apagados - diga aí, sem pensar muito, quem foram as suas bisavós - e no entanto eles existem agora, eles têm a generosidade de se mostrar, eles também tem sua noite de aplausos. É muito bonita a grandeza humana sem o fedor dos sonhos decompostos, da busca por algo que se perdeu no caminho.
Mas estamos na igreja, e não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Levanto do meu lugar para comprar um Twix - sempre deixo lugar para a sobremesa. Não sei, mas a gente dá um valor excessivo para as coisas inteiras. Um músico-engenheiro é um sujeito fora de lugar: se fosse músico de verdade, morreria o engenheiro; se é engenheiro, a música é um hobby. Franz virou Kafka, então sempre foi um escritor que colocou as vestes de funcionário por necessidade. Do fundo da sala, olho para a coleção de pessoas-fragmento: porteiro-ator, uber-soprano. Brilham também os cascalhos.
IV. Bar, Greenwich Village.
O Instagram leva a má fama, mas antes do aplicativo já tinham os retratos da nobreza e as figuras egípcias, com sua pompa calculada. A questão é essa: as imagens mentem. Aplainam a realidade. As pessoas vão ao Louvre para contemplar o enigma da Mona Lisa: sorriso ou muxoxo? Já no reino das palavras, duas camadas são mixaria.
Estamos tão acostumados com poses que poucas coisas são tão revigorantes quanto palavras sinceras, excessivamente sinceras. Karl Ove Knausgård e Emmanuel Carrère construíram a carreira literária ao jogar luz sobre o pior de si, em vez de escolher o melhor ângulo. Amy Schumer e tantos outros fizeram fortuna subindo no palco e se colocando no centro da piada. Há algo de redentor em ver os ícones do show business darem voz ao pior que dizemos a nós mesmo em pensamento, e depois permitirem o alívio da risada.
Para a piada autodepreciativa funcionar, o comediante não pode ser verdadeiramente digno de pena. Está em jogo uma dupla persona: a que pensa tão pouco de si a ponto de se humilhar em público e a que se tem em tão alta conta que acredita que mesmo o seu pior aspecto é digno dos holofotes. Naquela noite, subiu ao palco um homem gay de vinte e poucos anos. Na verdade, não havia palco, nunca houve palco - naquele fundo de bar, tudo era improvisado. Sam era uma daquelas pessoas com estrela, usando o truque mais venho do manual: o humor autodepreciativo.
Um judeu asmático do Brooklyn, um twink procurando por um bear - a rotina de comédia amadora começa com a delimitação de uma demografia. A pessoa precisa de um talento especial para tirar risadas de uma plateia de comediantes; a tentação de se comparar é muito grande, e a inveja mata a graça. Daquela vez, as pessoas riam. Não lembro muito, mas me recordo da disposição de ser bastante honesto e bastante obsceno. Acho que não tinha tanto para lembrar, pois agora em retrospecto eu sei que Sam era um contêiner vazio, um livro sem história. Às vezes a pessoa tem talento, mas ainda não aconteceu com ela nada ruim o suficiente.
(Continua…)
Vizinhança
Gosto muito dos passeios do
. A edição sobre Paterson é antiguinha mas ainda penso em pegar um ônibus pra lá por causa dela.Vergonhosamente, não conheço o Rio de Janeiro. Mas tenho dado um pulo no Flamengo com o
.Quando a vida urbana está demais, mas também não sou pessoa de ir pro mato, tem sempre a
com a atmosfera de Mendocino.
Não sei o que é mais lindo: um texto literário e tão arquitetonico, a parte de recomendações se chamar "vizinhança" ou eu estar nela!!! ♡ admiro demais seu trabalho, Ariela, e tô super honrada de estar nas suas indicações, brigada 😍
belíssimo texto, fiquei pensando muito nesse trecho aqui "Às vezes a pessoa tem talento, mas ainda não aconteceu com ela nada ruim o suficiente. "
animada para o próximo!