Algum tempo atrás, eu li Bell Jar numa viagem de trem para Boston. Foi um desses momentos que se abre um livro e se descobre um portal para uma outra pessoa: Sylvia Plath estava comigo, viva; a protagonista Esther Greenwood poderia ter andado horas antes ao meu lado, nas ruas de Nova York.
Desde então, eu reli muitas vezes os 10 primeiros capítulos de Bell Jar, em que Esther está em Nova York e é engraçada, mordaz, observadora. Eu nunca mais voltei para a 2a parte do livro, em que Esther retorna para Boston e um cerco se fecha sobre ela - a espiral de depressão e a tentativa de suicídio são devastadoras. Uma redoma de vidro recai sobre a protagonista e ela passa a ver o mundo como algo muito distante; a Esther da 1a parte, que já cambaleava, cai gradualmente. Sem querer, eu refazia o caminho de Esther, e o livro se tornava mais sombrio à medida que eu me aproximava de Massachusetts. Com o suicídio de Plath, a 2a parte do livro contribuiu fortemente para a mitologia da autora. Passou a ser impossível ler a 1a parte de Bell Jar sem procurar a Esther deprimida, a Plath suicida. Naturalmente, elas estão lá. A tragédia está nas 2 versões de Esther e de Plath existirem simultaneamente. Como a Esther da 2a parte submergiu a da 1a, o peso que os leitores dão à morte apaga uma Plath viva, uma Plath que pulsa na 1a parte do livro.
Plath fotografada para a Mademoiselle
Bell Jar é o primeiro e único romance da autora. Ted Hughes, viúvo de Plath, que se percebe que é um grande canalha apenas pela introdução condescendente que escreveu para Johnny Panic and the Bible of Dreams, fala que Plath sofreu muito para encontrar o tom na prosa. De acordo com Hughes, o sonho de Plath era ser uma escritora profissional e vender contos para a New Yorker; para ela, a poesia era só uma distração para o que via como o seu verdadeiro trabalho, que seria contar histórias. Conforme registros em seus diários, ela resistiu muito em contar a própria história, em buscar na sua vida os elementos para a prosa - recorrer à autobiografia seria sacramentar a sua falta de talento para a ficção.
Em Bell Jar, Sylvia Plath se desapega das restrições auto-impostas e começa a encontrar a sua voz, em vez de perseguir o tom que ela imaginava que a New Yorker buscava. Pressionada por uma bolsa que recebera para escrever um romance, Path faz um livro mordaz, observador e juvenil (ao contrário dos resenhistas da época, digo isso no melhor dos sentidos), inspirado na sua experiência em 1953.
Esther Greenwood, protagonista do livro, está em Nova York para um estágio de verão na revista Mademoiselle. (Apesar desse ser um texto sobre a Plath engraçada, vale notar que Esther é um nome tipicamente judaico e que o primeiro parágrafo do livro fala que aquele foi o verão em que eletrocutaram os Rosenberg - uma referência à execução de um casal judeu por espionagem em favor da União Soviética, e também um prenúncio do tratamento por eletrochoque que Esther recebe na 2a parte do romance). Aos 19 anos, Esther acumulou prêmios e bolsas de estudo mas, depois de um processo seletivo bastante competitivo, ela está simplesmente paralisada. Esther não sabe o que quer e mal sabe o que está fazendo em Nova York. Seu grupo de estagiárias está hospedado no Hotel Amazon, uma referência ao Hotel Barbizon, conhecida residência feminina para mulheres que vinham a cidade em busca de uma carreira (The Barbizon: The Hotel That Set Women Free: Bren, Paulina: 9781982123895: Amazon.com: Books).
Hotel Barbizon
Ted Hughes comenta que Sylvia Plath tinha um hábito de manter um diário no qual praticava exercícios flaubertianos de observação e escrita: ela descrevia exaustivamente as pessoas e os lugares que conhecia, chegando a se chatear se esquecia o padrão do papel de parede de uma casa que tinha acabado de visitar. Em Bell Jar, gosto em especial das descrições de pessoas:
“Eu nunca tinha conhecido uma garota como a Doreen. Ela vinha de uma escola para moças da alta sociedade no sul do país e tinha um cabelo loiro platinado brilhante, que se destacava ao redor da cabeça como algodão-doce, além de olhos azuis que pareciam bolas de gude de ágata transparente, duras, polidas e indestrutíveis, e uma boca que exibia uma espécie de sorriso de escárnio infinito. Não era um sorriso maldoso, mas divertido e misterioso, como se todas as pessoas ao redor fossem meio idiotas e Doreen pudesse contar umas boas piadas sobre elas quando tivesse vontade.”
De acordo com Hughes, algumas de suas descrições de pessoas próximas que constam no diário eram impublicáveis, porque maldosas e injustas. A narradora Esther descreve dessa forma Betsy, uma das estagiárias que parecia gostar dela na Mademoiselle:
“Betsy havia sido trazida direto do Kansas, com seu rabo de cavalo loiro tremelicante e seu sorriso de princesinha de fraternidade. Uma vez nós duas fomos chamadas para o escritório de um produtor de TV. O sujeito, que vestia terno risca-de-giz e tinha barba por fazer, queria ver se tínhamos alguma pauta para o programa, e Betsy começou a falar do milho macho e do milho fêmea do Kansas. Ela ficou tão animada com o maldito milho que até o o produtor ficou com lágrimas nos olhos, mas disse que infelizmente não podia usar aquilo no programa. (...) Betsy vivia me chamando para fazer coisas com ela e as outras garotas, como se estivesse tentando me salvar de alguma coisa. Ela nunca chamava Doreen. Pelas costas, Doreen a chamava de Vaqueira Poliana”
Alguns anos depois da publicação de Bell Jar, em 1969, Margaret Atwood lança “Mulher comestível”. O livro tem um primo distante em “A vegetariana”, de Han Kang (2007). Ambos falam de mulheres que param gradualmente de comer ao se identificar com a comida, em especial com a carne - algo que é massacrado, digerido e depois expelido. As minhas cenas favoritas de Bell Jar são sobre comida. Esther diz que não sabe o motivo, mas que não tem nada que ela goste mais do que comida. A protagonista de Plath não só tem um apetite vigoroso, mas: (1) aproveita os almoços corporativos para pedir os itens mais caros do menu (2) faz estratégias para não dividir o caviar com as colegas de mesa (3) aproveita para roubar a sobremesa alheia. Se alguém escreveu antes sobre filar a sobremesa dos outros, eu não tenho notícia. Sobre o caviar:
“Enquanto estávamos em pé atrás das nossas cadeiras, ouvindo o discurso de boas-vindas, eu havia curvado a cabeça e secretamente mapeado a posição das tigelas de caviar. Uma delas estava estrategicamente colocada entre mim e a cadeira vazia de Doreen. Imaginei que a garota à minha frente não conseguiria alcançá-la, dada a montanha de marzipã no meio da mesa, e que Betsy, que estava à minha direita, era boazinha demais para pedir que eu dividisse o caviar com ela, ainda mais se eu o mantivesse perto do meu cotovelo, junto ao pratinho de pão com manteiga. Além disso, havia outra tigela de caviar à direita da garota ao lado de Betsy, e ela poderia comer dali. (...) Sob o abrigo do tilintar das taças, talheres de prata e peças de porcelana, cobri meu prato com fatias de frango. Passei sobre elas uma grossa camada de caviar, como se estivesse passando manteiga de amendoim num pedaço de pão. Então peguei as fatias uma por uma, enrolei para que o caviar não escapasse e comi tudo. (...) Raspei os últimos ovinhos pretos do fundo do prato com a colher de sopa e lambi.”
A cena do caviar e da sobremesa é contada entre as lembranças da infância e a conversa à mesa sobre a bronca que ela levou da chefe. A escrita é habilidosa de um jeito tão discreto que eu só percebi de verdade o que Plath fez ao caçar as referências ao caviar ao longo de várias páginas.
No processo de escrever esse texto, descobri que Frances McCullough, a primeira editora americana de Bell Jar e dos diários de Plath, morreu faz 2 meses e deixou um legado de livros de culinária. (Ela também ganhou o primeiro PEN Award de edição, mas algo na obra de Plath me diz que títulos como Great Food Without Fuss não a envergonhavam de maneira alguma). Com base nos diários, McCullough comenta que Plath acreditava que o humor seria a marca da sua carreira como romancista. Em Bell Jar, o humor de Plath não é apenas refinado e sutil, como se imaginaria da poeta que escreveu Ariel, mas também escatológico e às vezes beirando o pastelão.
Depois do almoço em que Esther Greenwood e suas colegas de Mademoiselle se fartam de comidas caras, todas começam a passar mal: o grupo inteiro tem intoxicação alimentar pela carne de caranguejo. Esther e Betsy, a Vaqueira Poliana, retornam ao Hotel Amazon passando mal num táxi o tempo todo. Quando chegam no hotel:
“Normalmente basta vomitar para se sentir bem. A gente trocou um abraço, se despediu e saiu em direções opostas do corredor, para descansar em nossos próprios quartos. Nada melhor do que vomitar com outra pessoa para ganhar intimidade.”
Logo depois, Esther e Betsy se reencontram no banheiro coletivo do andar, numa crise de diarréia. As cenas de pequenas indignidades em Bell Jar são excelentes. Esther Greenwood pede vodca pura num bar, porque não entende nada de bebida e não quer parecer inexperiente. Ela passa constrangimento porque não sabe as regras de etiqueta sobre dar gorjeta em Nova York. Num encontro com a escritora milionária que patrocina sua bolsa de estudos na universidade, Esther bebe a água de lavanda que deveria ter usado para limpar elegantemente os dedos.
Por fim, temos Buddy Willard. Buddy é o namorado de Esther que está cursando medicina em Yale e se sente o melhor partido do mercado por conta disso. Ele é um moralista sem imaginação, e Esther está prestes a romper o relacionamento, quando Buddy precisa ser internado por tuberculose. Bastante coisa já foi dita sobre o feminismo em Bell Jar, com base nos comentários que Esther faz sobre o relacionamento com Buddy e sobre casamento, que revelam também os problemas que Plath enfrentava com Hughes. Comparativamente pouca coisa foi dita - ao menos para o meu gosto - sobre a Esther mordaz, ruinzinha, do trecho abaixo. Eu amo muito essa Esther.
“Falei para Buddy que lamentava muito pela tuberculose e prometi escrever, mas quando desliguei o telefone não estava lamentando coisa nenhuma. Só sentia um alívio maravilhoso. Pensei que a tuberculose podia ser uma punição pela vida dupla que Buddy levava e por se sentir tão superior aos outros. E achei bem oportuno que aquilo tivesse acontecido, já que agora eu não precisaria anunciar para todo mundo na faculdade que eu havia terminado com ele nem começar a chateação de sair com novos pretendentes.”
***
Poucas vezes eu fico triste de verdade pela morte de estranhos, de gente famosa que a gente vê nos jornais ou na TV; a exceção é Sylvia Plath. Se eu me concentrar muito, vem até umas lagriminhas pela Plath que se suicidou aos 30 anos, em 1963. Sinto que ela está viva nos primeiros 10 capítulos, que ela estava suando no verão de Nova York e se lambuzando de caviar, e preferia esquecer o que veio depois. Sinto também que Plath estava certa: se tivesse conseguido se manter viva, o seu senso de humor faria a sua marca como romancista.
O duplo fascinava Plath. Em Bell Jar, Esther Greenwood está escrevendo uma tese sobre o duplo em Finnegans Wake; na realidade, Sylvia Plath fez o equivalente a seu TCC sobre a duplicidade em Dostoievski. Para Plath e Greenwood, os lados sombrios e iluminados são indissociáveis. Dada a dificuldade que Plath teve de publicar em vida, talvez os primeiros 10 capítulos de Bell Jar nunca tivessem visto a luz do dia caso o seu destino pessoal não fosse tão parecido com o de Esther. Esses mesmos capítulos provavelmente perderam força se o leitor não descobrisse, não soubesse, que Esther estava à beira do precipício. De fato, Esther dá pistas do que vai acontecer desde o começo, e os dois lados de sua personalidade convivem e se chocam ao longo do livro. As coisas são como são, mas acho injusto que Plath seja lembrada como a escritora dos deprimidos. Houve uma Plath que não enfiou a cabeça no forno, e essa Plath ainda está viva em Bell Jar.
Os trechos em português usam a tradução de Chico Mattoso para a Editora Globo S.A.
Não conhecia essas histórias e adorei o jeito que vc nos presenteia contando ❤️
Vc me fez desejar ardentemente ler este livro.