A outra metade (5/54)
Com esse quinto texto sobre a Torá, chegamos na metade do Gênesis. Sara e Abraão morrem; Rebeca e Isaac casam-se e dão continuidade à família. A parashá da semana, chamada Chayei Sarah (“A vida de Sara”, 23:1-25:18), ilumina a segunda face da narrativa, escondida à vista de todos: os contos matriarcais.
Quando Sara e Abraão morrem, eles não tem nada do que lhes foi prometido. Décadas antes, o casal havia abandonado a Mesopotâmia com a promessa de que seriam uma grande nação: uma descendência abundante como as estrelas, em um território que pertenceria a eles.
Sob essa perspectiva, Sara e Abraão seriam um fracasso. Quando Sara morre, Abraão não era dono sequer de um lote de terra para sepultá-la, e precisa negociar a compra com os governantes locais. Quando Abraão morre, Isaac, seu único filho com Sara, não havia lhe dado netos; Ismael, seu filho com Hagar, não tinha contato com a família. Ainda assim, ambos terminam a vida satisfeitos. A Bíblia diz que Abraão deixou o mundo feliz e farto de anos; Rashi, talvez o maior comentarista da Torá, escreve que a repetição dos anos de vida de Sara (“E a vida de Sara foi de cento e vinte e sete anos, os anos da vida se Sara”), indica que todos os anos de sua vida foram igualmente bons. A eles não foi dado ver a realização das promessas; Abraão e Sara fizeram o melhor que podiam durante as suas vidas, passaram o bastão para a próxima geração e morreram em paz.
Essa parashá, que recebe o nome de Sara, traz ainda outra promessa que foi deixada incompleta. O Gênesis é o livro da Bíblia que mais guarda a lembrança de uma sociedade remota. Por ser considerado sagrado, o texto não foi alterado por mais de dois mil anos, preservando os vestígios de uma sensibilidade e de uma forma de vida que nos custou milhares de anos para começar a recuperar. Pois o Gênesis é, lado a lado, a história dos casais Abraão e Sara, Isaac e Rebeca, Jacó e Raquel, mas também de Hagar, a escrava egípcia; Léa, a esposa preterida, e Tamar, que se prostituiu para conseguir justiça. O material do Gênesis é a vida de mulheres comuns.
Entre a redação final da Bíblia e a readmissão das narrativas femininas na literatura ocidental, há um deserto de cerca de mil e oitocentos anos. Nesse período, as mulheres de carne e osso tinham vidas psíquicas tão complexas quanto as de qualquer pessoa que já viveu; a existência da humanidade toda é evidência do trabalho de mulheres, e no entanto temos quase dois milênios de vidas não registradas. Em “Um teto todo seu”, publicado em 1929, Virginia Woolf caminha por Londres “sentindo na imaginação a pressão do mutismo, o acúmulo de vidas não registradas”. E durante todo esse tempo o livro central da cultura ocidental, que foi lido em mosteiros e casas de estudo, que foi reinterpretado e recriado por sábios e poetas, sobre o qual Agostinho e Tomás de Aquino e todos os papas se debruçaram, no qual John Milton e Lord Byron e William Blake se inspiraram, esse livro contava a história das mulheres comuns da terra de Canaã.
No judaísmo ortodoxo, o dever de estudar Torá não se aplica a mulheres. Essa exceção na lei seria um reconhecimento do status espiritual mais elevado das mulheres, que poderiam então se dedicar a outros afazeres. Não há nada no Gênesis que autorize essa interpretação. As mulheres da Bíblia Hebraica não são santas nem demônios, nem virgens nem pecadoras - elas são radicalmente semelhantes aos homens no potencial para a baixeza e para a grandeza.
Quem é Sara? Em seu estilo críptico, a Bíblia constrói os personagens com algumas poucas cenas, e cabe ao leitor produzir mentalmente o filme que elas evocam. Sara abandona sua cidade Ur, na Mesopotâmia, com seu marido Abraão, e torna-se nômade em Canaã. Apesar da sua condição social aparentemente pouco destacada, ela é tomada para o harém dos governantes locais duas vezes: a primeira, pelo faraó do Egito, quando jovem; a segunda, pelo rei de Gerara, já idosa. Nessas ocasiões, Sara é usada como escudo humano por Abraão, que teme que a população local o assassine para tomar posse de sua esposa, caso saibam que eles são um casal. O texto, porém, sugere que o arranjo é consensual. Quando o rei de Gerara descobre que é mentira que eles sejam irmãos, ele se diz enganado tanto por Abraão quanto por Sara: “Acaso não foi ele quem me disse ‘É minha irmã' e ela, ela mesma não disse, ‘‘É meu irmão'?". Acuado, Abraão deixa clara a negociação com a esposa: “Quando Deus me fez andar errante longe de minha família, eu disse a ela: ‘Essa é a gentileza que você me fará: em todo lugar que estivermos, diga que sou seu irmão". Sara tem agência, e a família enriquece enormemente depois de ter enganado os dois governantes.
Quando Abraão teme morrer sem herdeiros, pois Sara é infértil, é dela a ideia de oferecer Hagar como concubina. Enciumada porque Hagar conseguiu conceber um filho e se sentindo humilhada aos olhos dela, Sara a maltrata ao ponto de Hagar tentar fugir da tribo. Sara não só não é vítima de Abraão, ela é algoz de outra mulher. Quando Deus lhe promete um filho aos noventa anos, Sara ri da sua situação: “Depois de secar, terei prazer, e meu marido é velho?". Após o milagre do nascimento de Isaac, Ismael, o filho já adolescente de Hagar, de fato ri da nonagenária lactante, e Sara aproveita a oportunidade para expulsar definitivamente ambos da tribo. Não há romantização do poder matriarcal: o toque feminino, no Gênesis, é a mão de Sara banindo Hagar e Ismael do convívio da família.
Essa figura poderosa e vingativa, corajosa e mesquinha, é a primeira que recebe um sepultamento com honras na Bíblia. A promessa que Abraão seria um dono de terras só começa a se concretizar quando, após se levantar do luto por Sara, ele compra um lote para enterrá-la. O corpo de Sara é o marco zero dos reinos de Israel e de Judá.
Agora o leitor poderia pensar que estou forçando a barra, que seria um anacronismo atribuir tanta importância à vida das matriarcas em um livro claramente patriarcal. Confesso que eu mesma achei uma concessão aos tempos atuais, pouco mais que uma piscadela para o feminismo crescente, quando me deparei com o primeiro livro de reza que alterou as referências a “nossos pais, Abraão, Isaac, Jacó, etc” para incluir “nossos pais e nossas mães, Abraão e Sara, Isaac e Rebeca, Jacó e Raquel, etc”. Mas a história das mulheres não só é absolutamente parte da Bíblia, o Gênesis não só é a história das mães tanto quanto dos pais, mas também a sociedade da época conciliava estruturas patriarcais e matriarcais.
A Mesopotâmia de três mil anos atrás, de onde Abraão e Sara teriam saído, era uma civilização na qual as tradições masculinas e femininas conviviam lado a lado. Existiam rituais que só as mulheres podiam fazer; os templos femininos seguiam uma hierarquia de poder semelhante ao que hoje associamos ao Vaticano, e uma alta sacerdotisa poderia ter mais influência que reis. No livro “Sara, a sacerdotisa”, Savina Teubal argumenta que a história de Sara só faz sentido caso ela não tenha sido uma hebréia comum vagando no deserto, mas uma mulher de status elevado em sua tribo de origem. O faraó não se interessaria por qualquer estrangeira bela que passasse pelo Egito, e o rei de Gerara provavelmente não tinha como hábito tomar idosas para o seu harém. A teoria de Teubal diz que Sara seria uma alta sacerdotisa e que a união com o faraó e com o rei de Gerara fariam parte das cerimônias de casamento ritual, no qual a representante do poder espiritual precisa convidar os governantes temporais para que recebam a sua benção através do sexo. Como o Gênesis circulou oralmente por séculos até que tomasse a forma escrita, esses contos de rituais mesopotâmicos teriam sido editados e transformados ao longo do tempo, removendo no processo referências indesejáveis.
Que a gente leia um texto com abundantes vestígios matriarcais e só consiga enxergar os patriarcais é uma evidência da força de leituras hegemônicas. O lugar que as mulheres alcançaram nos últimos anos no rabinato não é uma inovação moderna - é um resgate. A centralidade de Sara, Rebeca, Raquel, Hagar e Tamar é um indício do que era a cultura ancestral, mas também uma promessa que foi deixada inconclusa. O judaísmo - de fato, todas as religiões abraâmicas - usaram um texto de histórias femininas e masculinas para construir um edifício de tradições calcado em apenas metade da comunidade. E o que a gente faz quando recebe promessas que não se realizam? Como Abraão comprou o próprio pedaço de terra, a gente faz o pouco que dá, e entrega para a próxima pessoa continuar o trabalho.
Regina Jonas, primeira mulher a ter um título rabínico. Regina Jonas foi ordenada em 1935, na Alemanha nazista, e morta em 1944, em Auschwitz.
Sally Priesand, segunda mulher no rabinato. Movimento reformista, 1972.
Sandy Eisenberg Sasso, terceira mulher ordenada no rabinato. Movimento reconstrucionista, 1974.
Amy Eilberg, ordenada no movimento conservador, 1985.
Sara Hurwitz, ordenada no movimento ortodoxo, 2009.
The Women’s Torah Commentary, em tradução livre, escrito em 2000 (antes do movimento ortodoxo ter ordenado a primeira rabina):
“Ao ordenar as primeiras rabinas, a liderança dos três movimentos liberais lançou um convite para que todas as mulheres tomem a dianteira e entrem em um novo encontro com o judaísmo, para que reivindiquem sua igualdade e a desenvolvam. Somente quando um grande número de mulheres começar a levar a sério este convite, a decisão de ordenar mulheres realmente dará frutos. Somente então veremos as formas pelas quais o judaísmo será reinterpretado, reapropriado e transformado para, pela primeira vez, se tornar uma tradição que incorpora plenamente as percepções e experiências das mulheres. Para que isso aconteça, todas as mulheres judias devem assumir a responsabilidade de abrir os antigos livros do judaísmo e estudá-los como novos. (...) Em resumo, as mulheres devem se envolver no ato judaico mais antigo e mais moderno, o processo de exegese ou midrash. Esse processo foi responsável por manter a vitalidade da nossa tradição ancestral, à medida que gerações sucessivas abriram e reabriram o texto, construindo um mundo judaico novo a partir de matéria antiga. É exatamente esse processo que agora promete ser um veículo para a incorporação da sabedoria feminina ao judaísmo.”
“Nunca antes em nossa história nos referimos a nossos rabinos como "rabinos homens". Agora que temos cursos de "Mulheres no Judaísmo", vemos que temos estudado "Homens no Judaísmo" o tempo todo, acreditando erroneamente que estávamos aprendendo "apenas judaísmo". Presumimos que o que recebemos era uma forma neutra de judaísmo. (...) O que consideramos ser "apenas judaísmo" - o pensamento judaico, ensinamentos judaicos e comentários judaicos - eram quase exclusivamente masculinos.”