Queridos leitores, com esse texto chegamos ao final do Gênesis.
Em 2020, no auge da pandemia, eu me inscrevi em um curso que transformou a minha relação com as obras canônicas. O primeiro livro do curso foi a Bíblia Hebraica, estudada como obra literária.
Aprendi que os monumentos culturais não são peças de museu, protegidas em seus casulos de vidro blindado. Na verdade, eles só fazem sentido como argila que ainda pode ser manuseada. Como disse Italo Calvino, os grandes livros são aqueles que ainda não terminaram de dizer a que vieram; eles ainda estão em conversa com o leitor. O leitor contemporâneo da Bíblia é o último elo de uma cadeia de texto, interpretação e recriação. Estamos em diálogo com os narradores hebreus e os primeiros cristãos, Maimônides e Santo Agostinho, Kafka e Milton, Spinoza e Nietzsche. Ainda estamos redescobrindo a mesma história.
Desde 2020, minha relação com o conteúdo do curso também mudou. Não posso mais dizer que meu interesse pela Bíblia seja meramente literário ou intelectual. Quando, entre as capas de um livro, intuímos que exista algo de bonito e importante, é esse apenas um sentimento estético? Talvez a série bíblica desta newsletter seja mais religiosa do que admiti anteriormente, mas ela com certeza não é dogmática ou doutrinária. As metáforas prescindem de crenças.
O trecho a que se refere essa edição é Vayechi (“E ele viveu”, Gênesis 47:28-50:26).
“Era um verão estranho, sufocante, o verão em que eletrocutaram os Rosenberg, e eu não sabia o que estava fazendo em Nova York”. Essas são as palavras que abrem o único romance de Sylvia Plath, mas um dia poderiam ter sido minhas.
Lembro de estar num táxi, triste e cansada, e tudo à minha volta parecer absurdo. Absurdos os arranhas-céus e quem os constrói, absurdas as delis e seus letreiros de neon, absurdas as pessoas e suas esperanças. Eu estava triste e cansada, e não entendia de onde as pessoas tiravam a energia para trazer aquela cidade à vida todos os dias.
Lembro de estar em outro táxi. No trajeto do aeroporto para casa, sob a luz nova da manhã, Manhattan se levantava à distância. Como era lindo que, de uma terra como as outras, as pessoas tivessem inventado Nova York. Como era forte o ato de vontade que trazia aquela cidade à existência. Como era poderoso que, atravessada pelo vento que entrava pelas janelas abertas, eu fizesse parte daquela criação diária. Não tem nome certo a faísca que faz as pessoas criarem e recriarem o mundo todos os dias.
O Gênesis é o livro dos começos: do mundo, dos seres humanos, de uma família. Sua narrativa gira em torno da força por trás do que é criado e do que é destruído - ideias que pertencem ao mesmo contínuo, pois a destruição é a oportunidade para uma segunda criação. O Gênesis honra a força que empurra Abraão de sua casa para o desconhecido, a força que levanta do chão Agar e Jacó e os faz seguir em frente, a força que aniquila um mundo apodrecido para que as pessoas inventem um mundo novo. O livro também é especialmente preocupado com o ato de nomear. No jardim do Éden, os animais são levados a Adão para que recebam nomes. Abraão, Sara e Jacó recebem novos nomes ao longo da narrativa. Os personagens, as cidades e os acidentes do relevo recebem nomenclaturas de acordo com os eventos que se desenrolam. Gerações após gerações são exaustivamente evocadas, em uma longas cadeias de nomes. Às vezes os silêncios falam mais alto que as palavras - há um nome que é apresentado sem explicação. A faísca que anima toda a criação é chamada de Deus.
Os poemas épicos costumam começar com uma invocação às Musas. Com essa abertura, o poeta reconhece que o ato de criação em alguma medida ultrapassa a sua existência individual. Há um salto impossível que se assemelha ao milagre. Da mesma forma, as três matriarcas do Gênesis são inférteis: elas não dão à luz sem a assistência divina. A gravidez não é natural para Sara, Rebeca ou Raquel. Em um livro cujo chamado central é a reprodução sexual - “sede férteis e multiplicai-vos!” -, as concepções centrais tem a mão do inefável. Nascer é o improvável feito real. Não há livro que não seja escrito por Deus. Não há criança que não seja um milagre.
O Gênesis começa com uma explosão, um tour de force narrativo. Em questão de poucas linhas, Deus traz à existência o céu e a terra, a luz e a escuridão. Ao leitor é dado imaginar o infinito e além. O livro termina em um invólucro, com o corpo de José embalsamado em um caixão. Em Vayechi, morrem Jacó e José; num longo poema, são abençoadas as doze tribos de Israel. Deus, o protagonista do início, desaparece nos últimos capítulos. Seu nome é mencionado, mas ele não é parte ativa da história. Deus se ausenta como personagem e se afirma como metáfora da criação, a faísca que impulsiona para frente tudo o que é vivo. Antes da nova explosão que é o começo do Êxodo, com sua proliferação de nascimentos e o líder que vem de um cestinho na água, a força da criação silenciosamente passou a fazer parte de todas as pessoas.
Na semana passada, comemorou-se Purim, a festa judaica que lembra o livro de Esther.
Uma das coisas interessantes sobre esse livro é que ele é o único, em toda a Bíblia Hebraica, que não faz menção a Deus.
Para quem tiver curiosidade, o Torá com Fritas tem um podcast especial de Purim:
Monumento em Columbus, Indiana
a criação acaba.
e se renova.
um deus que sai da história
um dia volta.