A lei e a história (6/54)
Um conto de inveja e ódio entre irmãos - essa é a parashá Toledot, ("Gerações" ou “Nascimentos”), que narra a história dos filhos de Rebeca. Esse é o sexto texto sobre a Torá, também conhecida como os cinco livros de Moisés ou os cinco primeiros livros da Bíblia Hebraica (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio). As parashot são as porções semanais da Bíblia Hebraica, conforme a divisão de Maimônides (Rambam).
Por que ler histórias? Por que estudar histórias? Um rabino antigo uma vez disse que a Bíblia deveria começar no capítulo 12 do Êxodo, quando a lei é entregue a Moisés; antes da lei, só existiria uma antologia de contos. Na perspectiva secular, a pergunta seria: por que ler literatura? Por que ler os dramas inventados de pessoas inexistentes?
O significado literal de Torá é "ensinamento". A Bíblia é um livro de caráter didático, que promete algo a ser aprendido. No entanto, a tentativa de atribuir uma “moral da história" aos contos bíblicos os esvazia dos sentidos mais interessantes. A Bíblia não é uma grande fábula de La Fontaine, e qualquer leitura superficial revela que ela não pretende ser uma coleção de exemplos éticos. A literatura torna-se algo ridículo, um verniz de cultura, quando convertida em instrumento. As histórias só ensinam alguma coisa quando não as torturamos para que ensinem alguma coisa; quando aceitamos que são uma questão que não exige resposta, um emaranhado de motivações que pedem entendimento, mas não desembaraço.
A parashá Toledot é um exemplo de história sem moral. Rebeca engravida de gêmeos, numa gestação difícil que anuncia o conflito entre irmãos desde o ventre. Em sofrimento, Rebeca pergunta a Deus “porque eu?”, que lhe responde que ela dará à luz a duas nações, uma escrava da outra. Jacó nasce agarrado ao calcanhar do irmão Esaú, no encalço da primogenitura. Os irmãos têm personalidades opostas: Esaú, o mais velho, é um homem impetuoso que vive na natureza, um caçador; Jacó, o mais novo, é um homem da comunidade, que dá passos calculados. Jacó é o favorito da mãe, enquanto Esaú é o mais querido pelo pai. Nas sociedades antigas, os primogênitos tinham primazia legal sobre os irmãos mais novos. Jacó não aceita a ordem tradicional e decide sabotar a superioridade de Esaú. Primeiro, ele aproveita um momento de desespero do irmão para comprar o direito legal à primogenitura. Depois, em conluio com Rebeca, ele engana o pai para conseguir a bênção do filho mais velho, que representa a continuidade da aliança da tribo de Abraão com Deus. A parashá se encerra com a fuga de Jacó para a Mesopotâmia, jurado de morte por Esaú. Quem é o mocinho e quem é o vilão? Quem é o exemplo a ser copiado e quem é o modelo a ser evitado?
Robert Alter, estudioso da Bíblia, nota que Isaac é o mais passivo dos patriarcas. Jonathan Sacks, famoso rabino ortodoxo falecido há cerca de um ano, comenta que Isaac é marcado pelo trauma da rejeição paterna. Isaac presenciou o meio-irmão Ismael ser expulso da tribo e só o reencontrou no enterro do pai; ele viu que Abraão estava disposto a sacrificá-lo a Deus e teve a vida poupada no último minuto, mas não voltou o mesmo. Sacks nota que algo em Isaac morreu depois do episódio do sacrifício. Nos principais momentos de sua vida, ele está ausente. Não vemos Isaac quando sua mãe morre; Isaac não participa da escolha da própria esposa, que fica a cargo de um empregado da família. Entre quase ser assassinado pelo pai e ser traído pelo filho mais novo, ele não parece fazer muita coisa. Sabemos apenas de dois traços da personalidade de Isaac: ele é um homem de impulsos carnais e ele se recusa a abandonar qualquer um dos filhos, apesar de seus defeitos e mesmo tendo sido enganado.
Entre as duas etapas das armações de Jacó contra Esaú, a Torá encaixou a terceira história de marido e mulher vagando em terras estranhas e fingindo ser irmãos em nome da própria segurança. Dessa vez, o episódio ocorre com Isaac e Rebeca. A repetição parece bastante esquemática, exceto por um ponto: ao contrário das histórias com Abraão e Sara, a mentira não é descoberta pela intervenção divina, mas porque Isaac não se controla e é visto abordando sexualmente a esposa. Segundo Robert Alter, esse detalhe sugere que Isaac, normalmente pouco expressivo, é uma pessoa de fortes apetites físicos. Os comentaristas tradicionais esforçam-se em explicar o motivo de Esaú ser o filho preferido de Isaac, rejeitando a explicação literal oferecida pelo texto: “Isaac amava Esaú, porque apreciava a caça”. De acordo com a leitura tradicional, Esaú era um brutamontes que não merecia ser herdeiro de Abraão; um homem capaz de vender a primogenitura por um prato de lentilhas e de trazer decepção para a tribo ao tomar duas cananitas como esposas. O episódio da esposa-irmã, em conjunção com a explicação literal oferecida pelo texto, indicam que Isaac amava Esaú porque se reconhecia nele. Isaac sabia quem era o filho, pois conhecia a si próprio; mesmo que o Esaú não fosse digno de herdar a aliança com Deus, ao contrário de Abraão, ele colocaria o amor ao filho acima da obrigação divina e lhe daria a bênção do primogênito. De fato, Isaac é tão incapaz de sacrificar um filho que, quando descobre a traição de Jacó, ele não o amaldiçoa - ele o abençoa uma segunda vez.
Enquanto Isaac se identificava com Esaú, Rebeca se enxergava em Jacó. Na parashá anterior, que se passa cerca de 40 anos antes, Rebeca havia sido escolhida como noiva de Jacó por conta de sua bondade. Ela se ofereceu a dar água a todos os integrantes da comitiva de Ezequiel, empregado de Abraão, incluindo os camelos. Rebeca também demonstrou iniciativa e coragem quando, ao ser perguntada se preferia aguardar para encontrar o futuro marido, ela escolheu deixar a Mesopotâmia imediatamente. A interpretação convencional diz que essa Rebeca, encarnação da bondade, não poderia ter agido de má fé quando sugeriu que o filho preferido enganasse o marido cego e doente para roubar a bênção do filho mais velho; Rebeca teria feito o melhor para a comunidade, deixando a continuidade da tribo nas mãos de alguém mais confiável que Esaú. Diferente do amor de Isaac por Esaú, o texto não traz um motivo explícito para a preferência de Rebeca por Jacó. Rebeca poderia amar Jacó desinteressadamente, ou poderia preferi-lo por ele ser de fato melhor que o irmão. Rebeca tinha, porém, uma informação crucial: Deus havia revelado a ela que Jacó prevaleceria sobre Esaú.
Há cálculo nas ações de Rebeca. Ela sabia qual era o filho escolhido por Deus e se aliou a ele. Ela ouviu os planos do marido de abençoar Esaú e conspirou para enganá-lo. Ela conhecia as formas pelas quais o marido cego identificava as pessoas e vestiu Jacó com as roupas de Esaú, para que ele não o reconhecesse pelo cheiro. Todas as características de Jacó são anunciadas antes por Rebeca, sua mãe. Jacó é tão calculista que começa a destruir o irmão pelo mesmo elemento que o fazia preferido pelo pai: a comida. Isaac apreciava a carne que Esaú lhe trazia. Jacó fez o irmão cair pelo estômago: vendo Esaú voltar esfomeado de uma caçada, ele vende um prato de lentilhas em troca da primogenitura.
Não era um spoiler para o ouvinte bíblico que Jacó seria o futuro patriarca da tribo. Mesmo assim, a narrativa não só não economiza na descrição negativa de Jacó, como oferece simpatia a Esaú. Sabendo que o irmão tomou sua bênção, Esaú chora, cada vez mais desesperado: “Pai, me abençoe também (...) Você não guardou nenhuma bênção para mim? (...) Você tem apenas uma benção, meu pai? Pai, me abençoe também”. Após a traição e sentindo-se preterido pelos pais, Esaú faz uma tentativa atrapalhada de ser aceito pela família. Assim como Jacó é enviado para tomar uma esposa entre os membros da família estendida, Esaú casa-se pela terceira vez, agora com uma filha de Ismael. Nada surte efeito. Jacó, o herói canalha, é o próximo patriarca do clã.
Para que serve uma história dessa num livro religioso? Não seria tudo mais simples se a Torá pulasse a lenga-lenga e começasse com as Tábuas da Lei? Tomemos os Evangelhos cristãos como comparação. Eles também trazem histórias, mas de um tipo diferente: as parábolas. Em uma parábola, há claramente uma lição de moral; as situações podem ser complexas, mas elas são resolvidas de maneira inequívoca por um preceito moral ou ensinamento. Em algumas Bíblias cristãs, as palavras ditas por Jesus são marcadas em vermelho. Ao folhear os Evangelhos, salta aos olhos a quantidade de discurso direto, de lei moral sendo enunciada sem meias palavras. Na Bíblia Hebraica, a lei divide espaço com os casos de família. Os preceitos morais não nascem de pessoas elevadas, mas de indivíduos embrenhados nos seus ódios particulares, seus defeitos, seus fracassos. Na parashá Toledot, se decidirmos grifar as palavras enunciadas por Deus, vamos descobrir quatro versinhos.
Lembro de uma pessoa muito inteligente que certa vez me disse que não valia a pena perder tempo com literatura; que tudo que a ficção tem a comunicar poderia ser feito de forma mais direta - portanto, mais eficiente - através da História, da Sociologia, da Psicologia. De fato, se as histórias são apenas parábolas, é mais simples pular a lenga-lenga e partir para a conclusão moral - ou para o comentário histórico, a crítica social, a observação psicanalítica. A função das narrativas, porém, não é ilustrar preceitos. Uma boa história aponta para o que é difícil e incomunicável.
De acordo com o rabino Abraham Heschel, o judaísmo se equilibra na dualidade entre halachá e hagadá, a lei e a história. A halachá inclina-se para a uniformidade; a hagadá privilegia diversidade; a lei é o domínio da generalização, as histórias são o território da complexidade. O que o conto de Jacó e Esaú ensina? Irmão odeia irmão. Esposa engana marido. O canalha herda a tribo. Essa não é a lei; essa é a história.
“Halacha represents the strength to shape one’s life according to a fixed pattern; it is a form-giving force. Agada is the expression of man’s ceaseless striving which often defies all limitations. Halacha is the rationalization and schematization of living; it defines, specifies, sets measure and limit, placing life into an exact system. Agada deals with man’s ineffable relations to God, to other men, and to the world. Halacha deals with details, with each commandment separately; agada with the whole life, with the totality of religious life. Halacha deals with the law, agada with the meaning of the law. Halacha deals with subjects that can be expressed literally; agada introduces us to a realm which lies beyond the rage of expression. Halacha teaches us how to perform common acts; agada tells us how to participate in the eternal drama. Halacha gives us knowledge; agada gives us aspiration.
Halacha gives us the norms for action; agada, the vision of the ends of living. Halacha prescribes, agada suggests; halacha decrees, agada inspires; halacha is definite; agada is allusive.”
Abraham Heschel, “God in search of man”