Interrompemos nossa programação bíblica para tratar de outro livro que começa com um gênesis e termina com um apocalipse: A hora da estrela, de Clarice Lispector.
Assim começa A hora da estrela:
“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o que, mas sei que o universo jamais começou."
Todo mundo sabe que essas são palavras que devem ser lidas com a mão no peito, alma formada, prenúncio de revelação. Clarice, a mística. Clarice, semideusa da literatura brasileira. Epifania e mistério.
Na primeira vez que li esse livro, tinha uns 16 anos e marquei as páginas todinhas com um sentimento próximo do que na época era o emo. Clarice falava umas palavras bonitas e profundas sobre a vida, com um jeito de quem entendeu as coisas melhor do que todo mundo.
Não ia reler A hora da estrela, porque não é agradável lembrar de ser tola. Mas reli em uma sentada, e depois de novo, e de novo. Com o risco de ser tola outra vez, mas agora em sentido contrário, faço aqui uma humilde proposta: A hora da estrela é - como definição provisória - uma sátira. A piada é justamente quem lê, enternecido, a prosa poética buscando ressonâncias profundas da musa-deusa-mística Clarice. O narrador do livro é Rodrigo S.M., e ele é um homem pretensioso, desagradável, que enxerga a enormidade do mundo dentro de si e apenas o vazio e o ridículo na Macabéa. Rodrigo S.M. é um Dom Casmurro; ele é um narrador não confiável.
Depois do parágrafo inicial, o livro continua assim:
“Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.”
Rodrigo S.M. quer que o leitor saiba que essa é a versão simples da complexidade existencial que tem dentro de si (“A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma palavra só que a signifique”). Ele se apresenta como um escritor atormentado. O que incomoda nosso profundo narrador? Ele cruza na rua com uma nordestina - uma nordestina genérica, deixada sem nome por um terço da narrativa, intercambiável com qualquer outra que vagasse pelo Rio de Janeiro - e esse encontro o deixa como engasgado. Rodrigo S.M. tem que colocar para fora o (horror?) da nordestina (“O que escrevo é mais do que uma invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. Porque há o direito ao grito. Então eu grito”).
A hora da estrela é a história de Rodrigo S.M., o profundo, imaginando a vida de uma pobre-coitada. Ele dá a nordestina um namorado, uma colega de trabalho, uma cartomante - mas o personagem central é si mesmo (“A história (...) vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S.M.”). Se entendermos personagem como a representação de uma figura humana, multifacetada e contraditória, o narrador seria de fato o único personagem da trama. Macabéa, seu namorado Olímpico e sua colega Glória são planos como figuras de papelão; eles são projeções do que o narrador pensa que é um pobre.
O autor-narrador tem uma relação difícil com a matéria que descreve. Ele pede desculpas ao leitor por invadi-lo com uma narrativa tão exterior e explícita. Ele declaradamente não tem misericórdia ao inventar Macabéa, mas depois anuncia que ele é o único que a ama. Macabéa é sua invenção, mas a realidade de sua criação o acusa e o condena (“Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela”).
Qual a vida que Rodrigo concede a Macabéa? Macabéa é uma datilógrafa de 19 anos, uma alagoana morando no Rio de Janeiro. Amarelada pela desnutrição do sertão, ela tinha um “rosto que pedia tapa” e um “olhar de quem tem uma asa ferida”. “Ela como uma cadela vadia era teleguiada exclusivamente por si mesma”. “Às vezes antes de dormir sentia fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca. O remédio então era mastigar papel bem mastigadinho e engolir”. Quando o namorado a levou para o zoológico, ela “teve tanto medo que se mijou toda”. Quando ele a levantou com os braços, Macabéa disse, eufórica: “deve ser assim viajar de avião”. Citações de Clarice que não estamos acostumados a ver na internet em fundo escuro e olhar lânguido.
Por trás da página, quem é o narrador que inventa Macabéa? Rodrigo S.M. tem uma voz e um estilo que o aproximam das famosas narradoras de Clarice, e por isso somos indulgentes com ele mesmo quando nos confessa que o livro em questão “teria que ser (escrito por) homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas”. De fato, A hora da estrela equilibra-se na capacidade de confissão do narrador, e por isso não é uma sátira verdadeira. A dor de Rodrigo S.M. é real (“Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isso é ser uma pessoa?”). A falta é real (“Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens”). A culpa é real (“Mas por que estou me sentindo culpado? E procurando aliviar-me do peso de nada ter feito de concreto em benefício da moça"). A hora da estrela não é uma sátira - é um riso de nervoso.
Rodrigo S.M. sabe que está escrevendo para outros Rodrigos, nunca para Olímpicos e Macabéas:
“Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver com as vezes é o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia”.
Sem saber que seria sua última obra, é como se Clarice Lispector tivesse feito de A hora da estrela a reflexão final sobre o papel da sua literatura - mística? existencialista? - em um país como o Brasil. Em um país no qual, rasgando-se sobre o sentido da vida e a natureza das coisas, Clarice fala apenas aos ricos (“a classe baixa nunca vem a mim”). O Rodrigo que vê o pobre ou com desprezo ou com idealização, como alguém que ser evitado ou ser salvo, a ser diminuído ou louvado, mas nunca, nunca, um igual - esse Rodrigo, explosão de culpa burguesa, é o narrador com quem o leitor é levado a se identificar.
A hora da estrela é um romance com treze títulos. O segundo chama-se “A culpa é minha". Ao longo do livro, Rodrigo alternadamente se condena e se oferece à absolvição. Ele faz uma Macabéa ridícula, mas também se rebaixa. Ele a humilha, mas diz que a ama. Ele narra com arrogância, mas também com culpa (“Antecedentes meus de escrever? Sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto”). Rodrigo é a classe letrada olhando a si mesma mirar o pobre. E o resultado é um riso amargo.
Em sua acepção bíblica, traduzida do grego, “apocalipse” significa “revelação”. A “hora da estrela” que dá nome ao livro é o momento em que Macabéa morre na calçada, atropelada por uma Mercedes Benz amarela. O ápice do pobre é o espetáculo da morte (“Quando penso que eu poderia ter nascido ela - e por que não? - estremeço e parece-me covarde fuga de eu não ser, sinto culpa como disse num dos títulos”). A classe letrada se expia da culpa pelo espetáculo da pobreza.
Essa leitura deve muito aos colegas da Grande Conversa Brasileira, curso promovido por Alex Castro (A Grande Conversa Brasileira, novo curso | alex castro). Meu agradecimento especial pela interlocução de Robson A. e Matheus A., companheiros de conversas.
Tem alguns textos que leio e vão me dando um tipo de palpitação de entusiasmo, o coração bate descompassado, fico com vontade de encaminhar pra todos que conheço e mais, de forçá-los a ler esperando que sintam o que eu sinto (o que sei que não é possível). Esse é um deles, estive no grupo d'A grande conversa brasileira tbm, cheguei a acompanhar algumas conversas sobre a Clarice lá, mas acho que o apocalipse pra mim se deu aqui. Obrigada :)