18 de Janeiro
É bobo, mas eu não sei cumprimentar em inglês. O instante que segue a palavra. O movimento que completa a intenção. A linguagem do corpo que se junta à linguagem da fala e dissipa a distância entre os que se encontram. Ainda cumprimento como uma estrangeira. Estendo o rosto para o beijinho, mas americano não dá beijo, então calculo se tenho intimidade para o abraço, mas não tenho certeza, e no intervalo de cálculo o momento já passou e dou um oi animado demais para ver se a pessoa não percebe algo de errado.
Com os amigos, não faz diferença. No trabalho, é só um aperto de mão. É entre o grupo de pessoas que são amigáveis mas não amigas, que são conhecidas mas que talvez agora já devessem ser um pouco mais - é nessa névoa social que a minha falta de fluência se revela. Aí morava o Seth, no momento de hesitação antes do abraço.
O Mike faz parte de uma banda de blues. Se você pegar um lugar na mesa mais próxima do palco, no canto direito, dá para ficar bem perto dele. Esse é meu marido. Do lado dele está a Tina. Quando não é vocalista, ela trabalha atrás do balcão do Irish Whiskey Bar. Logo atrás está o Mohammed, que me parece estar mexendo os dedos meio à toa, porque ainda não aprendi a ouvir o baixo. Do lado da Tina está o espaço vazio do Will, o tecladista que vai dar o ar da graça apenas no intervalo. No canto oposto a mim fica o Seth. Ele é o baterista.
Eu aprendi uma coisa ou outra sobre música nos últimos anos. Por exemplo, é a bateria que dá o ritmo. Quando a acústica é ruim e a banda está tocando sem retorno, os músicos estão surdos no palco. As cordas da guitarra vibram silenciosas. A voz vira um ruído distante. A bateria produz o único som que se ouve quando não se entende mais nada. Enquanto ainda se puder seguir o baterista, há alguma esperança de coordenação.
Teve uma época em que eu não ficava sozinha na mesa. Havia namoradas e significant others e encontros de aplicativo que estavam ficando sérios. Elas foram sumindo uma a uma, até que restei eu e a minha Coca-Cola. No intervalo, quando a banda abaixa os instrumentos e cumprimenta os conhecidos, só tem eu lá no cantinho. O Mike me dá um beijo suado. A Tina me envolve num abraço efusivo e desaparece atrás do balcão para buscar as bebidas gratuitas dos músicos. O Mohammed se joga na cadeira mais próxima e eu falo que ele está tocando muito bem, cada vez melhor. O Seth se desvencilha da bateria por último e parece sempre que está me vendo como se pela primeira vez.
Ele se aproxima e pega uma das cervejas recém dispostas no centro da mesa. Racionalizo que estamos num pub mais ou menos, não no salão da realeza, e que ninguém precisa de deferências introdutórias. Mas vejo nos seus olhos que também lhe sou uma estranha, que ele também hesita. Compadecemo-nos ambos de nosso embaraço e pateticamente damos um abraço que é só ombros. O silêncio que se segue ao gesto. A conversa fiada que não engata. Will chega atrasado, sorriso fácil, desculpas esfarrapadas. E num momento, tapinha nas costas, Seth se refugia em uma conversa entre músicos.
É bobo, mas no seu ritmo de baterista, quem sabe ele sentia que havia um descompasso entre nós. Seth morreu no dia 18 de janeiro, aos 32 anos, de parada cardíaca. Era meu trigésimo segundo aniversário.
Essa é uma história mais ou menos real, mais ou menos inventada. Semana que vem volto com a programação normal.